quarta-feira, dezembro 29, 2004

2004/2005

A seqüência de números não importa. O restante é apenas uma sucessão de momentos aleatórios, sempre governando a nossa vida rumo a lugar nenhum. A todos os lugares. No meio do caos, nunca perdemos de vista a ordem que é necessária para compreendermos aquilo que achamos que entendemos. No fundo é sempre a mesma coisa. Apenas uma troca de números convencionada. Promessas vazias, copos cheios e muitas risadas. Sim, tudo isso já aconteceu. Tudo isso acontecerá. De novo e de novo. Até que, de repente, paramos no meio de um ano para sempre... Ano que vem veremos. Feliz próximo ano a todos!

sábado, dezembro 25, 2004

Capítulo 09

Assim que a moça entrou naquela sala, dei dois passos para trás. O susto havia sido grande, pois desde o momento que ouvi o barulho da chave sendo passado pela porta até o momento que percebi quem realmente era eu havia pensado em milhares de possibilidades. Nunca ela, nunca essa moça com cabelo mal pintado de loiro, olhos claros, algumas sardas no rosto e corpo sensual. Ela me olhava séria. Eu até poderia dizer que ela sorria levemente, como se a vitória já fosse dela, como se tudo o que ela havia planejado tivesse dado certo. Eu não sabia dizer. Também não sabia o que fazer. Apenas respirava.
- Então, é aqui mesmo que eu pretendia te encontrar – ela disse.
Eu permaneci quieto. Ela sabia que eu ia acabar ali quando ela me disse tudo aquilo na rodoviária. Fui enganado e manipulado. Mas eu ainda tinha muitas dúvidas.
- O que está acontecendo? – eu perguntei.
- Nada do que for dito pode esclarecer as nossas maiores dúvidas.
- Não faz sentido. Eu não vim até aqui para passar por tudo isso.
- Mas você então sabe por que veio?
- Também não, mas isso não importa.
- O que importa então?
- Deixou de responder perguntas para fazê-las?
- Eu não estou fazendo perguntas para saber as respostas.
- Por que está fazendo então?
- Agora quem está é você, não eu.
- Tudo bem. O que você pretende fazendo tais perguntas?
- Se você me deixasse perguntar talvez você descobrisse.
- Qual foi a sua última pergunta?
- Boa pergunta. É uma pergunta que tem como resposta uma outra pergunta. E, caso eu perguntasse algo cuja resposta fosse outra pergunta e você fizesse o mesmo novamente, e assim por diante, então entraríamos no círculo vicioso da dúvida racional.
- Do que você está falando?
- Quem faz as perguntas agora sou eu. Mas a resposta para a sua pergunta é: O que importa?
- Não sei. Só sei que nem sempre o importante é aquilo que sabemos de imediato.
- Isso faz sentido apenas de um lado. Apenas do seu lado.
- Por quê?
- Enfim, olhe para a cadeira cor-de-rosa – E ela me apontou a cadeira.
- O que tem? – Eu me virei olhando novamente para a cadeira.
- Sabe por que ela está aqui?
- Sei sim. Eu sentei nela.
- Então você teve a visão...
- Tudo ficou mais claro.
- Deixe-me terminar minhas frases!
- Desculpe.
- Você teve uma visão incompleta da realidade que te cerca.
- Desculpe?
- Eu sei que é difícil de entender, mas não basta que as coisas façam sentido.
- Por quê?
- Muitas coisas não fazem sentido, mas mesmo assim você as aceita.
- Como o quê, por exemplo?
- Outra pergunta que respondo com mais uma pergunta: Como você veio parar aqui?
Então era esse o jogo dela. Responder parcialmente todas as minhas perguntas, e perguntar coisas que, sem dúvida, gerariam mais dúvidas. E assim eu ficaria louco, pois era isso que ela queria me mostrar. Tudo o que eu falasse, perguntasse, opinasse... Nada seria suficiente, tudo seria questionado e seria colocado em dúvida por essa moça. Confesso que sorri. Sorri e comecei a balançar a cabeça, enquanto ela me olhava ainda séria. Percebi que estávamos conversando sobre uma coisa, mas ao mesmo tempo querendo dizer outras coisas.
- Venha comigo. Está na hora de sair daqui – Ela disse. Então ela se virou de costas e fez um sinal com a cabeça para que eu a acompanhasse. Olhei em volta. A estante, a mesa... A cadeira cor-de-rosa. Tudo fazia sentido. Mas e agora? Não sabia para onde estava indo, como sempre. Eu já estava começando a me acostumar com isso.Dei de ombros e a segui, sem medo, e penetrei novamente naquele corredor escuro do qual havia vindo.

quinta-feira, dezembro 23, 2004

Insano

Nossas percepções, principalmente sentimentais, podem nos confundir terrivelmente e isso pode gerar muita dor e desespero. Era fim de noite. Eu, já bêbado, deixei meus braços caírem sobre a mesa e minha cabeça sobre eles. Fechei os olhos e estava entrando em um momento importante, que é quando pensamos em coisas mais sérias, não somente em sexo e em drogas como o resto da noite, mas principalmente em como voltar para casa, no que fazer no dia seguinte, em nossos compromissos e responsabilidades e o quanto a noite havia sido produtiva. Eu pensava nisso lentamente (se é que nosso pensamento pode ser lento, mas quando estamos bêbados pelo menos é o que parece). Definitivamente a minha noite não havia sido produtiva. Pelo menos até aquele momento.
Eu ouvia a música da moda ao fundo, deitado na mesa imunda. Eu me sentia tão sujo quanto o ambiente e também tão bêbado quanto qualquer jovem medíocre gosta de ficar em seus finais de noite. Mas eu era jovem, ainda sou, então não via grandes problemas nisso. Estava com uma preguiça enorme, provavelmente gerada pela bebedeira, para levantar e pagar a minha conta para sair daquele lugar. Sabia que precisava fazer isso alguma hora e teria que ser logo, caso contrário eu adormeceria ali mesmo. Seria bem vergonhoso ser acordado pelo dono do bar que sempre toca os bêbados de seu estabelecimento como tocamos cachorros famintos que nos seguem na rua. Ri para mim mesmo, pois eu era isso: um grande cachorro.
Pouco antes já havia experimentado a minha estupidez. Um grupo de meninas, em outro bar não longe daquele, estava reunido em torno de uma mesa. Algumas estavam sentadas conversando, outras em pé dançando uma música besta que sequer lembro o nome. Cheguei o mais próximo que meu senso de civilidade permitia, ou seja, cheguei bem perto mesmo! Falei besteiras no ouvido de uma, falei besteiras no ouvido de outra, e quase levei um tapa de uma terceira, todas do mesmo grupo. Humilhado, sorrindo de minha desgraça como sempre faço, saí daquele lugar e acabei afundando minhas frustrações no álcool, que dominava minha cabeça, naquele bar sujo no qual me encontrava. Claro que na minha mente também passavam outras histórias já vividas, outros foras, alguns até mesmo com direito a tapas na cara de verdade. Isso me fez sorrir.
Enquanto eu estava deitado, senti que alguém se aproximou e sentou ao meu lado. No mesmo momento, sem pensar duas vezes, levantei a minha cabeça com o propósito de visualizar o bar a minha volta. Na minha frente havia pessoas que já estavam ali quando cheguei, sentadas em outra mesa, e foi a primeira coisa que vi. Ao redor nada havia mudado, porém ela estava sentada agora ao meu lado. Não a conhecia, e ela olhava para mim sorrindo, como se tivesse descoberto um pequeno tesouro bobo, aquele que achamos legal ter encontrado, mas que passados cinco minutos não tem mais nenhuma importância na nossa vida. Como todo bêbado covarde (eu estava bêbado e sou covarde) eu pulei na minha cadeira, assustado pela ambigüidade da situação: eu, bêbado porco, ela, menina linda e sorridente. Juntos, ela ao meu lado e eu do dela. Isso, para mim, era muito estranho.
Ela havia tomado a iniciativa. Sentada ao meu lado, olhava para mim, e ainda por cima sorria. Eu precisava comentar alguma coisa, mas ainda não sabia o quê. Limpei a garganta enquanto meu cérebro processava as coisas ainda lentamente, mas dessa vez eu não estava deixando ele em paz, queria que se apressasse, estava desesperado para comentar alguma coisa. Mas não poderia ser qualquer coisa, tinha que ser algo inteligente, algo que impressionasse, pois ainda estava tudo nulo entre nós dois, e qualquer passo em falso poderia estragar tudo! Mas estragar o quê? Ainda não tínhamos nada, a não ser uma troca de olhares bizarra, como quando chegamos a um lugar totalmente novo e olhamos para todas as caras do lugar para ver se não achamos alguém conhecido que nos salve de nossa solidão inevitável. Mas eu não estava sozinho, não mais. Ela permanecia ali olhando para mim e eu provavelmente estava com a cara amassada e com os olhos de ressaca, parecidos com o de Capitu, porém os meus eram verdadeiros por serem frutos da ação alcoólica. Tentei gaguejar alguma coisa, mas ainda não havia limpado a garganta, e não queria dizer nada com uma voz rouca de quem acabou de acordar. Eu estava confuso.
Eu ainda não havia formulado nada em minha cabeça vazia e ela logo disse rindo que estava preocupada comigo. Preocupada? Essa menina, com os olhos profundos e azuis, os cabelos lisos, negros e longos, com a pele um tanto quanto pálida, com um nariz pontiagudo, em resumo, com um rosto lindo e em perfeita harmonia com seu sorriso, ela estava preocupada comigo, um bêbado nojento? Logo de cara já percebi que ela tinha um senso de humor admirável. Então senti que poderia falar com minha voz normal. Perguntei os motivos de sua preocupação, sorrindo para ela. Ela me contou que tinha acabado de entrar no bar, quando eu tinha apenas colocado a cabeça sobre meus braços e estes sobre a mesa, e desde então estava me observando. Fiquei pasmo, desde quando uma garota como ela, com curvas não perfeitas, mas muito atraentes, notaria uma pessoa como eu? Fiquei muito tempo deitado, ela me disse, e por isso ela presumiu que eu estava muito bêbado, ou até mesmo drogado, e como estava sozinho eu poderia precisar de ajuda. Ela se aproximou de mim, e notou que eu respirava e, às vezes, ria. Por isso ela percebeu que eu estava mergulhado em uma espécie de sono, não o comum, mas o da bela adormecida, que enquanto dormia esperava por um príncipe encantado em um mundo mágico e de fantasias. Sorri para ela, balançando a cabeça, e apenas comentei que a noite havia sido longa.
Então ela me questionou se eu realmente estava sozinho. Balancei a cabeça negativamente, e ela permaneceu em silêncio, com o olhar típico de quem exige explicações. Atrevida! Nem me conhecia e já exigia explicações? Gostei dessa postura, um tanto quanto dominadora, e fiquei ainda mais interessado por ela, mas agora não era somente pelos seus dotes físicos. Falei que meus amigos estavam por aí, um vomitando no banheiro enquanto outro segurava seus cabelos, um outro conversando com uma menina no canto daquele mesmo bar. Ainda havia mais meia dúzia deles, mas todos em lugares que não conseguia mais imaginar, e também nem gostaria. Ela riu e eu rapidamente perguntei se ela também estava sozinha. Isso me interessava muito. Ela também balançou a cabeça negativamente, apontando para um grupo de garotas em pé no canto do bar. Algumas balançavam o corpo ao embalo da música da moda que tocava de fundo, outras com copos de cerveja na mão, mas nenhum homem presente. Presumi que não havia nenhum homem com elas, pois os olhares dos seres masculinos do ambiente as devoravam vivas, e isso me fez sorrir, pois essas coisas não mudam mesmo. Notei que nenhuma delas era feia, estavam bem vestidas, e não deixei de me questionar os motivos delas terem parado num bar como aquele.
Fui informado, logo depois que ela abaixou o braço que apontava para o grupo de amigas, que elas haviam acabado de chegar. Isso eu já sabia, pois se elas já estivessem por lá certamente eu as teria notado. Balancei a cabeça afirmativamente, e pisquei os olhos passando minha mão pelo rosto, pois eu estava querendo acordar da bebedeira, mesmo sabendo que isso é impossível em apenas cinco segundos. Ela ainda sorria, e eu agradeci a preocupação dela e mergulhei em um silêncio que não queria ter mergulhado.
Eu procurava em minha mente dezenas de assuntos para serem abordados, milhares de situações, infinitas opiniões, mas nenhuma delas poderia ser dita sem que houvesse um clima já definido, e ele justamente não existia. Tentava quebrar com o silêncio, mas não conseguia, e comecei a ficar desesperado com isso. Então ela se vira para mim e pergunta meu nome. Claro, o nome! Como eu era mal educado, sequer havia perguntado seu nome e já queria discutir outros assuntos? Disse o meu nome, e logo perguntei o dela. Camila. Combinava com seu rosto, com as curvas de seu corpo, não sei porquê. Agora ela já não era apenas um rosto no meio de tantos outros daquela noite, ela já tinha um nome, nós já tínhamos começado a nossa história.
Isso me fez pensar sobre os motivos que a levaram a se aproximar de mim. Que tipo de história ela queria ter comigo? Poderia ser uma espécie de brincadeira, como uma aposta entre elas e as amigas, que sempre estavam olhando para nós dois. Eu seria o último suspiro de uma noite de diversão, em que ela apenas brinca com os sentimentos dos outros, com a vontade que os homens têm de satisfazer suas cotas sexuais e sociais quando lidam com uma garota. Ela, com perfeita noção disso, aproximando-se de todos os jovens para lhes retirar a dignidade no momento perfeito, no momento em que eles se inclinam para beijá-la e ela apenas retruca que não é namoro, mas sim amizade. Como aquele terrível programa da televisão, que infelizmente é uma das minhas bases culturais. Mas não comigo, eu seria diferente. Não cairia em seu jogo, e ela poderia até me usar como apenas mais uma história para contar no dia seguinte, quando todas as amigas ligam umas para as outras contando sobre o que havia acontecido na noite passada, como, por exemplo, dos garotos que haviam conhecido, principalmente aqueles que são mais ridículos, como eu. Não liguei, tanto faz como tanto fez.
Para entrar em seu jogo, mas consciente, perguntei como havia sido a noite dela até ali. Ela me contou que passou por diversos lugares e que nenhum deles estava tão bom. Eu falei que onde estávamos também não estava. Falei isso sem pensar realmente, com uma voz um pouco mais séria e um olhar ébrio cabisbaixo. Ela sorriu e me perguntou se a presença dela não melhorava as coisas. Sorri também, e afirmei que se não fosse isso eu continuaria deitado na mesa, sem fazer nada. Nesse momento ela se acomodou melhor ao meu lado, se aproximando um pouco mais de mim, o que me fez pensar muitas coisas nada agradáveis. Passei a desejar vê-la nua, de possuir seu corpo com minha boca, de fazer o que é proibido de fazer em lugares públicos. Mas logo tive que repelir esses meus desejos, pois eles certamente atrapalhariam minha conversa, e se eu apressasse as coisas com certeza eles não se tornariam realidade.
Então ela reclamou sobre alguns compromissos no dia seguinte, que ela já deveria estar em casa descansado para o próximo dia. Questionei quais seriam esses compromissos, e ela me falou sobre uma espécie de “documentário musical” que estava preparando. Achei isso muito estranho, e formulei algumas perguntas sobre o que exatamente seria um “documentário musical”, mas confesso que não entendi muito bem. Não era um documentário sobre música, e nem um vídeo-clipe com cenas reais, mas algo diferente. Fiquei realmente intrigado. Ela percebeu o meu interesse e passou a me questionar sobre os meus gostos, tanto para cinema quanto para música, e a partir daí a conversa tomou forma e espessura.
Percebi que ela tinha muitas opiniões formadas, pois não permanecemos conversando apenas sobre cinema e música, mas também sobre política, filosofia e principalmente arte. Mesmo que muitas vezes nossas opiniões não fossem parecidas, pelo menos tinham algo em comum: eram bem elaboradas. As opiniões dela eram mais bem elaboradas que as minhas, e mudei a minha visão de mundo naquela noite, aprendendo bastante sobre a inutilidade cultural que tanto me fascina. Éramos como duas crianças trocando figurinhas e realmente estávamos nos dando bem, não tentando nos impor como muitas vezes acontece quando pessoas que se dizem eruditas se encontram por acaso, como se quisessem provar para o outro, apenas por motivos que o ego conhece, quem sabe mais. Ao contrário, nossa discussão fluiu devidamente. Isso fez com que a bebedeira pesasse menos em meu crânio. Eu já não percebia ninguém a minha volta, nem nada, somente a Camila e sua voz, suas idéias. Atrás daquele rosto e dentro daquele corpo ainda existiam muitas coisas para serem descobertas. Senti alegria. Ela transparecia isso também, e por isso hoje afirmo que ela é uma falsa.
Passado algum tempo uma das amigas da Camila se aproximou na nossa mesa. Ela sorriu para mim, e eu de volta. Ela falou alguma coisa para a Camila, que não entendi muito bem, e logo foi embora sem olhar para mim e nem me dirigir uma única palavra. Então Camila se voltou para mim e disse que precisava ir embora, que já era tarde, e que ainda tinha compromisso no outro dia, etc, etc, etc. Porém ela permaneceu sentada, como se estivesse esperando alguma coisa. Apenas soltei um sorriso, mas ela permaneceu imóvel. Desejei boa noite e ela me olhou com o mesmo olhar exigente que havia me lançado quando disse que não estava sozinho. Eu realmente estava confuso. Então ela suspirou e colocou as mãos sobre a mesa para tomar impulso e se levantar para ir embora, sorrindo um sorriso forçado, propositalmente forçado. Meio sem saber o que fazer, eu tomei coragem e segurei o braço dela, antes que ela se retirasse. Ela suspendeu seu movimento e me olhou séria. Perguntei se não seria muito atrevimento pedir para que ela deixasse o telefone. Ela sorriu e retrucou que já estava imaginando que eu não lhe faria essa pergunta. Ela se apossou delicadamente de um guardanapo que estava sobre a mesa, tomou uma caneta de sua bolsa e rabiscou algumas coisas nele. Dobrou o guardanapo e me entregou, sorrindo e me beijando no rosto. Depois me disse que tinha sido muito bom ter me encontrado e que eu havia salvado a noite dela. Antes de falar que ela também havia feito o mesmo por mim ela saiu da mesa rapidamente e se encontrou com suas amigas que a esperavam na porta do estabelecimento. Ela olhou para trás, jogou um sorriso em minha direção, desaparecendo pela rua.
Eu estava segurando o guardanapo dobrado sem ousar olhar para ele. Eu ainda estava contemplando a saída do bar, pensando sobre o que acabava de acontecer comigo. Tentei montar Camila novamente em meus pensamentos. Ela era cada vez mais linda. Permaneci parado sorrindo. Então senti o guardanapo em meus dedos e lentamente o desdobrei, observando surgir um “Camila” escrito em preto com uma letra cursiva cheia de curvas. Logo abaixo desse desenho estava uma seqüência de números, como um código, como a chave para futuras alegrias. Eu ainda estava bêbado e os bêbados se enganam facilmente. Depois eu perceberia que tudo isso era falsidade, que nossas alegrias estão baseadas em projeções futuras e não realmente naquilo que estamos vivendo. Tomei o cuidado de guardar aquele precioso bilhete em meu bolso, de modo que ele não se molhasse com o suor que as bebidas geladas haviam deixado sobre a mesa, estragando a mensagem que ele deveria me passar. Dessa forma paguei a minha conta e sem avisar ninguém saí daquele lugar rumo para casa.
No dia seguinte acordei com meu humor alterado. No momento em que abri os olhos eu já me lembrei do rosto dela, de nossa conversa, do jeito dela falar. Tudo parecia ter sido perfeito. Levantei e fui até minha calça verificar se o guardanapo ainda estava lá. Estava intocado, mantendo a informação preciosa bem guardada. Dei alguns passos pelo meu quarto, pensando que no momento em que ela se levantou da mesa do bar na noite anterior eu deveria ter segurado seu braço e beijado a sua boca. Mas depois eu lembrei que havia prometido para mim mesmo que não me entregaria de qualquer forma ao jogo sinistro e maldoso que provavelmente ela estava planejando. Mas também pensei que ela havia sido realmente muito gentil comigo, e que o fato dela ter pensado, mesmo que em apenas alguns instantes, que eu não pegaria seu telefone, e depois ter sorrido para mim dizendo que estava esperando que eu pegasse seu número, fez com que eu pensasse muito a respeito dessa possível “brincadeira”. De repente não seria brincadeira, de repente ela estaria mesmo querendo algo mais. Resolvi que logo depois do café eu ligaria.
Desci as escadas e fui tomar meu café. Lembrei que a noite havia sido confusa, porém maravilhosa, e resolvi cair nesse joguinho de uma vez, seja ele brincadeira ou não. A alegria transparecia em meu rosto. Eu era só sorrisos. Terminei meu café rapidamente, e logo subi ao meu quarto para usar o telefone. Porém pensei alguns instantes e achei que seria muito atrevimento ligar naquela hora, pois eu acabei de acordar, então ela poderia estar dormindo ainda. Mas depois pensei que ela havia me dito ter alguns compromissos, o tal documentário, e por isso já deveria ter levantado. Peguei o telefone para discar o número desejado, mas depois pensei que ela poderia não estar em casa e que de nada adiantaria eu ligar. Então lembrei que ela não me disse onde seria esse tal compromisso e por isso ela poderia estar na casa dela, de repente editando algum vídeo ou ouvindo alguma música como forma de trabalho. E então pensei que ela poderia ter previsto todos esses meus pensamentos e ter dado o telefone de outro lugar, pois ela poderia ter previsto que eu levantaria tarde por causa de minha bebedeira, e que ficaria com muita vontade de ligar, e por isso havia me fornecido o telefone de onde ela provavelmente estaria durante esse tempo e que mais tarde eu não a encontraria, só se eu ligasse naquele instante. Depois pensei que as coisas não funcionam dessa forma, que ninguém faz isso com outra pessoa (apesar de ser bem interessante) e que, antes de escrever os números, ela poderia até ter pensado nisso tudo, mas também pensou que de repente eu não ligaria, ou também teria outros compromissos que me impedisse de ligar assim que acordasse, de modo que o mais seguro seria mesmo o telefone de sua casa ou do lugar onde seria mais fácil encontrá-la. Coloquei de volta o telefone no gancho e resolvi ligar mais tarde. Mesmo se ela estivesse em casa trabalhando em seu documentário eu não queria atrapalhar, pois eu não tinha nada já definido para dizer, nem nenhuma questão para colocar, ou sequer uma proposta para fornecer, portanto seria com a desculpa de “ter saudades” com a qual eu ligaria para ela. Caso ela estivesse ocupada poderia achar minha atitude inconveniente. De forma alguma eu queria que esses fatos contribuíssem de forma negativa no julgamento que ela montaria sobre mim. Então pensei que já era tarde, já havia passado a hora do almoço, e que ela já poderia ter terminado seu compromisso, ou seu trabalho, e que estaria em casa agora apenas esperando a minha ligação. Então pensei que eu não poderia ter sido o único a pegar o telefone dela, e que de repente ela não estaria esperando apenas a minha ligação, ou não principalmente a minha, mas sim a de vários outros, o que me deixou levemente triste. Então parei com minhas dúvidas, pois percebi que muitas delas não tinham nenhuma base na experiência, e todas não passavam de suposições vazias e sem sentido. Resolvi ligar mais tarde, pois eu estava apenas acordando e não queria que ela me ouvisse no telefone com a voz rouca e com o raciocínio lento e abstrato.
Passei a maior parte da tarde procurando o que fazer. Sentei na frente do meu computador, digitei algumas palavras, mas estava impaciente demais para produzir alguma coisa interessante. Tentei ler um pouco, desde filosofia até literatura, mas eu não conseguia me concentrar. Passava a maior parte do tempo lembrando de minhas palavras na noite anterior assim como das palavras da Camila. Isso me fazia rir enquanto tentava ler um texto de Marx, que nada tem de engraçado, só de triste. Percebendo que não estava absorvendo nada, resolvi colocar uma música e deitar em minha cama. Fechado os olhos eu somente via a Camila. Então bati duas vezes em meu rosto e pensei que meu cérebro estava dando passos largos, o que provavelmente poderia ser ruim, pois meu cérebro sequer tem pernas. Atropelando todas as etapas de um relacionamento eu já me imaginava ao lado da Camila, beijando sua boca no meio de um museu depois de ter ido ver um filme artístico em algum cinema escondido da cidade. Nada disso tinha acontecido e era apenas mais uma fantasia criada pelo meu desejo. Então percebi que sempre fazia isso, não somente com a Camila, mas sempre que a oportunidade me presenteava com uma bela garota, uma garota interessante. Eu sempre costumo me imaginar nessa posição de namorado, e assim tomo atitudes parecidas e exijo delas um posicionamento análogo, fazendo com que uma possível relação se desmanche devido ao meu comportamento infantil baseado na minha ilusão que, tristemente, se confunde com a realidade. Então parei de pensar nessas coisas, ouvindo aquela música, e suspirei tentando ao máximo me inserir onde realmente estava: em meu quarto, deitado ouvindo música, e não em algum museu depois de ter ido ver um filme qualquer. Senti meus olhos pesados. Inevitável conseqüência da bebedeira do dia anterior. Então deixei que a música tomasse conta de minha cabeça enquanto cantarolava com aquele vocalista desafinado. Assim caí no sono novamente.
Despertei quando a última música havia acabado e olhei para o relógio. Já era noite e eu não tinha feito nada de produtivo, não tinha conseguido ler, não tinha ido ao cinema, não tinha escrito nada. Levantei rapidamente e corri para o banheiro para lavar meu rosto. Depois que passei água encarei minha face no espelho e descobri que ainda estava vivo. Meus olhos estavam brilhando e dentro deles eu podia notar que ainda havia muita coisa que não conhecia. Isso me deixou com medo, mas feliz. Então saí do banheiro, fui ao telefone, peguei o guardanapo escrito com tinta preta, li a seqüência de números e os transportei através de meus dedos para o teclado do aparelho na minha frente. Senti um frio na barriga, pois tinha feito tudo isso sem hesitar nenhum momento. O telefone começou a chamar.
Cada toque do telefone parecia uma eternidade. Era longo, e subitamente parava, deixando um intervalo de silêncio infinito até o próximo toque. E quando o próximo toque chegava, sempre dava a sensação de esperança de que ele sumiria repentinamente e uma voz tomaria o seu lugar dizendo alguma saudação. Seria a voz da Camila a primeira que escutaria? Poderia ser seu pai? Sua mãe? Sua irmã? Não sabia se ela tinha pai, mãe ou irmã, não sabia quase nada de sua vida pessoal, seus relacionamentos... Teria namorado? Não tinha ousado perguntar na noite anterior, e agora me questionava a respeito disso. E se ela tivesse? E se os dois estivessem agora na casa dela, fazendo sexo, enquanto eu, tolo, estou do outro lado sendo ignorado sem saber? Tudo isso me deixava confuso e com raiva, mas ao mesmo tempo eu sabia que todas as coisas poderiam ser verdade, mas apenas “poderiam” não queria dizer que efetivamente eram. O telefone chamou pela terceira vez.
De repente ouvi o barulho de quando alguém tira o telefone do gancho. Um breve silêncio se fez. Logo depois uma voz feminina disse “alô” e eu prendi a minha respiração um pouco. Então perguntei, tentado ser o mais educado possível, sobre a Camila. A mesma voz respondeu “é ela”. Então senti novamente o mesmo frio na barriga e sem demora me apresentei, pois detestaria que ela esquecesse que deixou seu telefone comigo. Então ela deu risada, a mesma risada que me lembrava, e com uma voz alegre e brincalhona me disse que já estava pensando que eu não ligaria mais. Foi difícil lidar com essa declaração. Eu fiquei realmente bem confuso, constrangido. Não esperava que ela me esperasse e eu não sabia o que dizer ou pensar. Então ela estava lembrada de mim nitidamente, claro, quem estava bêbado ontem era eu e não ela. Mais ainda, ela havia aguardado meu telefonema. Por quanto tempo? O dia inteiro? Algumas horas? Somente alguns segundos, pois ela lembrou de mim faz pouco tempo e eu liguei quase no mesmo instante? Optei pela risada. Falei que claro que ligaria, afinal de contas tinha sido uma noite e tanto. Ela responde que tinha gostado da mesma forma, não da noite inteira, mas somente da parte que havia me conhecido. Meu coração já batia mais forte. Eu estava caindo direitinho nas garras dela, naquele momento eu sabia disso. A diferença é que agora eu sei que isso foi terrível.
Perguntei se estava atrapalhando alguma coisa e ela disse que não, que estava realmente me esperando. Então ri de volta e perguntei sobre o projeto dela. Ela suspirou e me disse que estava um tanto quanto decepcionada, que as coisas não estavam dando certo, poucas pessoas colaborando, etc, etc, etc. Então disse que se ela precisasse de ajuda poderia contar comigo, desde que me explicasse o que seria um “documentário musical”. Ela riu e falou que talvez eu ainda não estivesse preparado para isso e que seria muito melhor se eu visse quando estivesse pronto, dessa forma seria inesquecível. Dei risada e concordei, afinal de contas não estava tão interessado assim. Ela poderia ser uma garota interessante, mas era improvável que teria uma idéia genial, tão genial a ponto de revolucionar o cinema. Pelo menos nisso eu estava certo.
Então ela me perguntou como tinha sido o meu dia e o que eu tinha feito. Conversamos sobre essas coisas banais, porém importantes (principalmente na hora em que estamos conhecendo alguém). Perdi a noção do tempo e só depois que desliguei o telefone descobri que havíamos ficado três horas conversando. Mas antes de desligar ela havia perguntando o meu telefone, pois ela não queria ficar esperando mais... Custava a acreditar nessas palavras. De bom grado forneci não somente o telefone de minha casa, mas também do meu trabalho e o meu celular. Ela os anotou rindo, dizendo que agora seria impossível eu sumir da vida dela. Demos boa noite um para o outro, e ela prometeu que me ligaria logo.
Deitei aquela noite imaginando que as coisas estavam indo bem. Mal sabia eu que o bem e o mal sempre andam juntos, e se somos felizes agora podemos esperar que logo seremos tristes novamente, pois nossas alegrias sempre transitam entre esses dois estados, e por isso não são estados diferentes, mas sim um único. Da mesma forma que a corda é a sempre a mesma, e a brincadeira é sempre a mesma, independente de quem ganha o cabo-de-guerra. Mas naquela noite fui para a cama satisfeito, sorrindo, e adormeci brincando com minhas lembranças, tanto da noite do bar quanto da conversa pelo telefone. Ela ainda ganhava todos os argumentos, mas prometi que aprenderia com isso e me tornaria tão inteligente quanto ela.
No outro dia fui trabalhar feliz. A noite eu olhava para o telefone, mas nada de ligações para mim. Assim que o telefone se manifestava eu imaginava que poderia ser ela, e logo começava a fazer alguma coisa para ser interrompido e dizer para ela que eu estava lendo, ou estava estudando, ou estava apenas ouvindo música. Mas nunca era interrompido e isso me frustrava. Os outros dias não foram muito diferentes. A confusão aumentava em minha cabeça. Será que depois de tanta simpatia e consideração ela teria me esquecido? Seria assim tão cruel? Ela estaria esperando a minha ligação? Eu deveria ligar? No quarto dia depois de nossa última conversa ela ainda não havia entrado em contato. Eu já estava enterrando nossa relação, prevendo que diria coisas ásperas para ela assim que ela ligasse, e que nunca mais queria que ela me procurasse, pois era um absurdo andar sumida por todo esse tempo. Mas depois lembrei que não éramos tão próximos assim um do outro para que eu exigisse isso dela. Eu tinha que me conter.
Passado mais dois dias, no sexto, em pleno sábado, o telefone toca. Com o último suspiro de esperança eu atendo a ligação e escuto a voz dela, com grande prazer, perguntar sobre mim. Exigi explicações, pois estava aguardando a ligação dela, e ela justificou dizendo que não queria ser muito atrevida, enchendo meu saco todos os dias. Eu falei que seria um prazer se ela fizesse isso. Ela riu dizendo para eu tomar cuidado, pois ela poderia começar a fazer isso sempre e quem ia se encher seria eu. Perguntei então se ela queria apostar, para ver quem se encheria primeiro de quem. Ela topou. Apenas uma aposta moral. Depois disso conversamos normalmente sobre as coisas que haviam acontecido conosco durante aquela semana. Assim que o assunto começou a morrer ela me questionou a respeito dos filmes que eu andei vendo. Comentei alguns deles, que ainda estavam em cartaz. Ela me perguntou de um específico que ela queria ver. Falei que ainda não tinha visto, e ela me perguntou se não o veria com ela no dia seguinte. Com grande emoção eu falei que certamente, sem dúvidas nenhuma, ela poderia contar comigo. Combinamos a hora e o local. Desliguei o telefone prevendo que cairia em um grande erro, mas que na hora mesmo assim me deixava feliz. Eu já tinha minhas dúvidas.
No dia seguinte nos encontramos no lugar combinado. Nos abraçamos como velhos amigos. Comprei os ingressos e entramos no cinema, que já estava escuro. Durante todo esse percurso conversamos sobre coisas idiotas, fizemos brincadeiras sobre os filmes que estavam em cartaz (e que ambos sabíamos que detestaríamos). O filme começou. Notei que não era muito bom, porém percebi que ela estava gostando. Notei erros de montagem, falhas no roteiro, mas ela parecia tão compenetrada que não ousei dizer nenhuma palavra. Permaneci totalmente imóvel até o fim do filme.
Depois que o filme acabou nós nos levantamos e saíamos do cinema. Caminhamos um pouco pela rua comentando o filme, e nesse instante eu deixei escapar, quase sem querer, que não havia gostado de algumas partes. Ela questionou os meus motivos. Eu disse abertamente, expondo o meu raciocínio o mais claro que conseguia. Ela sorriu e disse que era exatamente por isso que tinha gostado de mim: eu era um garoto inteligente. Com surpresa recebi esse elogio, pois eu a considerava bem mais inteligente que eu, com muito mais carga cultural e noções que nem sonharia em possuir por desconhecer completamente que existissem. Então revelei que eu não era assim, mas sim ela que era. Ela sorriu em silêncio e eu percebi que, pela primeira vez desde que eu a conhecia, ela estava um pouco constrangida. Então disse que estava gostando muito de caminhar ao lado dela. Ela permaneceu quieta. Resolvi sinceramente não tocar mais no assunto. Passei a pensar em outras coisas, tentando puxar algum assunto, mas de repente ela apressou os passos saindo do meu lado e parando na minha frente, voltada para mim, olhando com seus olhos claros para a profundidade do meu ser. Eu parei também e a encarei, um pouco confuso, pois não conhecia nenhuma brincadeira desse tipo. Ela não me disse nada, apenas pegou minhas mãos e fechou os olhos, sorrido e aproximando seu rosto do meu. Então era isso... Fechei meus olhos e beijei sua boca. Não era nada como eu havia imaginado, mas era exatamente o que eu queria. Ela me abraçou. Eu a envolvi em meus braços, de modo que nossos corpos estavam grudados, em pé, no meio da rua.
O beijo terminou lentamente, como as reticências de uma frase, ou seja, com diversos pequenos beijos depois. Ela olhou para mim sorrindo, mas não disse nada. Eu também não disse nada. Andamos o restante do caminho de mãos dadas, conversando sobre coisas banais, ainda nos conhecendo. Chegamos na casa dela, e nos despedimos com outro beijo, também longo. Ela sorriu e me pediu para ligar enquanto caminhava para o fundo de sua casa pelo jardim. Eu apenas sorri de volta. Saí de lá sem perceber o mundo a minha volta, mas sabendo que tudo o que conhecia era maravilhoso. Pelo menos parece maravilhoso. Esse é o engano mais comum das pessoas apaixonadas, que acham que até mesmo a pessoa que amam é maravilhosa.
Os dias se passaram rapidamente. Eu ligava para ela quase todo dia. Nos dias que não dava para ligar, no outro certamente ela me ligaria perguntando o que havia acontecido, se eu a havia esquecido, ou se eu a deixaria. Tudo isso com um tom de brincadeira. Dávamos risada no telefone, dávamos risada quando saíamos. Passamos a fazer vários programas juntos, como teatro e shows. Às vezes passávamos a noite inteira em um bar qualquer, bebendo, conversando e namorando. Tudo estava caminhando muito bem, e nossas discussões sempre se davam devido as nossas diferenças de opiniões. Nesses momentos essas diferenças não têm importância alguma. Sempre acabávamos essas “brigas intelectuais” com um longo e úmido beijo. Nesse período tudo foi maravilhoso, e agora eu vejo que esses momentos não passaram de pura maldade da parte dela. Pela primeira fez posso dizer com certeza que conheci o mal de perto. Tão de perto a ponto de ter envolvimento emocional com ele.
Passado algum tempo nossa relação já havia tomado forma pela rotina. Eu já freqüentava a casa dela, ela também a minha. Já tínhamos assumido o namoro, até mesmo trocávamos presentes de vez em quando, apesar de que nem eu e nem ela éramos ligados a bens materiais. Passei a pressioná-la para um envolvimento sexual, mas ela sempre me cortava com muita classe. Não a julguei por causa disso, eu não tinha pressa, sabia que seria inevitável. Infelizmente não deu tempo, e essa é a única coisa que lamento hoje em dia em relação a ela.
Apesar de tudo eu passei a notar algumas mudanças no comportamento dela. Suas ligações estavam bem menos freqüentes. Eu a questionava, mas ela nunca me respondia claramente. Passei a suspeitar de seu comportamento e eu sempre a procurava para tentar ao máximo cumprir com meu dever de namorado. Ela me dizia que tudo estava bem, que eu era um garoto maravilhoso, e que nada estava errado. Passei a dar de ombros e a confiar no que ela me dizia.
Certo dia eu liguei para a casa dela, mas ela não estava. No outro dia foi igual, assim como no terceiro. Deixei de ligar esperando que ela aparecesse, mas foi em vão. Somente depois de duas semanas ela me ligou, quando eu já a dava por morta, mas nem me forneceu explicações, mesmo quando eu a questionei. A partir daí tudo mudou completamente.
Passei a tratá-la diferente, sempre tentando fazê-la cair em meu jogo sentimental. Ela não se alterava. Nossas brigas se tornaram cada vez mais freqüentes. Um dia resolvi dar um basta, marcamos um encontro em um lugar qualquer para conversar seriamente sobre o nosso namoro. Eu já sabia o que diria, ela já sabia o que queria ouvir.
Cheguei atrasado no lugar por causa do trânsito. Ela ainda não estava lá. Fiquei esperando por muito tempo, até que ela apareceu sem dar nenhuma justificativa. Eu estava mais bravo que o normal, e todos esses acontecimentos juntos, remoendo em meu cérebro, só me faziam crer mais ainda que era necessário dar um basta em tudo isso. Então olhei bem para aqueles olhos, os olhos claros e profundos, e disse que não estava agüentando mais, que as coisas não estavam indo do jeito que eu gostaria que estivessem. Ela permaneceu quieta. Eu fiquei quieto durante um tempo, mas depois salientei que era necessário, para o bem de ambas as partes, colocar um fim em nosso namoro de uma vez por todas. Ela olhou bem em meus olhos, sem manifestar nenhuma emoção em seu rosto, e virou as costas para mim, andando lentamente sem olhar para trás e sem me dizer nada. Atrás dela eu gritei que pelo menos merecia alguma consideração, pelos momentos que tivemos, mas foi em vão. Aquela atitude me atordoou. Voltei para casa em lágrimas.
Imaginei que se eu fizesse essa pressão, colocasse o namoro na corda bamba, ela repensaria nossa situação e notaria, com certeza, que eu era o homem da vida dela. Então ela choraria em meus braços, dizendo que me ama, e que ela nunca mais aprontaria essas coisas comigo. Então eu a beijaria, como nosso primeiro beijo, e ficaríamos juntos para sempre, como desde o começo eu acreditei que ficaríamos. Mas nada disso aconteceu. Sentia muita raiva, a ponto de permanecer dias com meu humor alterado.
Dessa vez o tempo não foi meu amigo. Depois da raiva inicial, meus dias caiaram em completa desilusão. Tinha que me conter para não ligar para ela, ao mesmo tempo em que esperava ansiosamente pela sua ligação. Mas isso não acontecia. Todas as noites eu lamentava, revendo em minhas lembranças os possíveis erros que cometi para deixá-la ir embora. Mais ainda, corrigir tais erros e me tornar um outro homem, de modo que ela não pudesse mais negar seu amor, pois seria um amor diferente, por outra pessoa, eu mesmo. Mas não consegui achar meus erros. Não custou muito para ser o namorado ideal, não a enchia muito, ela tinha sua liberdade. Também não era carinhoso demais, muito menos idealista demais. Nossa relação era estável, e apenas nas últimas semanas, depois de meses de convivência, ela tinha entrado em crise. Era muita imaturidade jogar tudo para o alto sem antes tentar perceber o que está de errado. Eu tentei ser maduro.
Dias mais tarde, quando a minha raiva já havia se diluído completamente em minhas boas lembranças, ela me ligou. Reconheci a voz dela, mas não ousei cumprimentá-la logo de cara, sem que ela se identificasse. Conversamos um pouco, sem tocar sobre o nosso namoro e nada parecido, apenas a título de sabe o que estava acontecendo um com o outro. Nesse momento fiquei sabendo que finalmente ela estava conseguindo fazer o seu projeto cinematográfico. Ela também ficou sabendo de minhas promoções no trabalho, e incluindo novas amizades que fiz questão de mencionar. Desligamos o telefone como se não passássemos de amigos.
Nos próximos dias eu continuei a receber ligações dela. Achava tudo muito estranho, pois não parecia que havíamos terminado um namoro de maneira tão chocante. Tudo bem, eu sei agora que não foi tão chocante, mas só sabe o que sofre quem está inevitavelmente envolvido na situação. Passamos a trocar confidências, já rindo ao telefone um com o outro. Mais nada.
Certo dia, enquanto saía sozinho do cinema, encontrei Camila descendo a escada rolante do shopping. Fiz questão de verificar se ela estava sozinha. Depois tentei me esconder atrás de algum lugar, de algum quiosque ou pilar, mas não teve jeito. Enquanto procurava por um refúgio ela me viu e acenou alegremente. Não tinha como escapar. Fui de encontro a ela sabendo que seria nosso primeiro encontro depois do fim de nosso namoro, e também depois de muito tempo. Enquanto caminhava em direção a ela eu pensava que o destino é muito cruel, se é que existe um, pois ele fez questão que a encontrasse sendo que estava na hora de esquecê-la. Amaldiçoei todos os deuses naquele momento. Dei um beijo em seu rosto e, sorrindo, perguntei como ela estava. Ela sorriu também e disse que estava bem. Trocamos meia dúzia de palavras e resolvi sair dali o mais rápido possível, pois ela me olhava e sorria da mesma forma que no bar onde havíamos nos conhecido. Essas lembranças, para o coração de um apaixonado, são torturas das mais cruéis. Ela não parecia sofrer, o que me deixava ainda mais triste, como se eu não tivesse feito nenhuma falta. Comentei que tinha que ir embora, mas ela segurou meu braço dizendo que eu não podia ir embora naquela hora, que tínhamos muitas coisas para conversar. Falei, já andando para a saída, que se ela quisesse conversar poderia me ligar, pois eu não estava com tempo disponível para conversar aquela hora. Voltei para casa pensativo.
No dia seguinte ela me ligou. No meio da conversa formal eu mencionei que achava o destino cruel, por ter feito nos encontrar por acaso. Ela apenas respondeu que ela não era cruel. Fiquei em silêncio alguns instantes. Para confirmar essa declaração eu ainda insisti perguntando como um bocó “então você foi lá só para me ver?”. E ela disse que sim, foi tudo planejado. Achei muito infantil da parte dela, mas não ousei dizê-lo. Ela falou que estava com saudades e que aquilo tinha feito muito bem para ela. Apenas suspirei, como se estivesse cansado, e falei que precisava desligar, pois tinha muitos compromissos no outro dia. Ela perguntou se poderia continuar me ligando. Eu falei que estava tudo bem, mas sem pensar realmente o que isso queria dizer realmente.
Não estava entendendo nada. Lembrei dos momentos iniciais de nosso namoro, na época que era feliz. Como eu gostaria que aquela felicidade voltasse. Pensei em outras pessoas, em outras garotas que havia conhecido nesse tempo. Nenhuma delas se comparava com a beleza da Camila, com o sorriso dela, com a sua genialidade. Mas pensei que nada pode ser assim, que eu não sou um brinquedo dela, e por isso não havia mais chances de retorno. Estava decidido!
Ela não desistia. Todos os dias eu recebia uma ligação dela. Em muitos deles a gente conversava muito, durante horas, como nos velhos tempos. Fui cedendo e minha idéia fixa começou a amolecer. Passamos a sair juntos novamente, a ver filmes e shows, mas sempre sem nenhum contato próximo. Voltamos a ser amigos.
Um dia tudo isso mudou, mas mudou radicalmente. Estávamos em um bar do subúrbio da cidade, bêbados, conversando sobre vários assuntos. A noite estava no fim e já nos encontrávamos sozinhos. Talvez fosse o efeito do álcool, mas eu a olhei novamente com os olhos de namorado. Fiquei imaginando novamente seus beijos, seu corpo... E tudo isso era muito mais difícil que da primeira vez, pois essas imagens se misturavam com lembranças reais. Ela sorria muito, também alcoolizada. Até hoje não sei como ousei fazer isso, mas me inclinei um pouco em direção a ela, e ela parou de sorrir imediatamente, fechando os olhos e pronta para o beijo. Eu a beijei. Ela se deixou beijar totalmente, envolvendo seus braços em torno do meu corpo, como se fosse a primeira vez. O beijo foi longo. Porém, depois que ele terminou, eu olhei para ela e ela olhou para mim assustada. Perguntei o que estava acontecendo e ela disse que não sabia, mas que estava gostando. Então eu sorri, pois sentia meu coração bater estranho novamente. Então ela olhou para baixo e de novo para mim, com seus olhos claros tentando achar alguma coisa no meu. Ela deixou meus braços bruscamente e falou que eu estava confundindo as coisas. Eu disse que se eu estava confundindo ela também estava, pois ela havia gostado e deixado eu beijá-la. Ela me deu um tapa na cara, forte, sem dó. Quase caí no chão e foi realmente bem doloroso. Assim que recuperei minha postura ela virou as costas e saiu correndo. Tentei ir atrás dela, mas ela já havia sumido pela rua escura. Voltei para casa envergonhado. Não consegui dormir aquela noite.
No outro dia ela me ligou e conversou comigo como se nada estivesse acontecendo. Então eu tentava retomar o assunto sobre nosso beijo, sobre o tapa, e ela fingia que tudo era uma brincadeira, e até pediu, em tom de brincadeira, para que eu parasse de ouvir músicas que dizem “tapas e beijos”, pois não eram boas músicas. Não dei risada, pois estava achando tudo confuso. Então ela declarou que queria voltar para mim, que ela tinha sido uma idiota, que estava confusa... Eu suspirei e fiz ela prometer não bater mais em mim. E ela disse que não faria isso. Engoli o meu orgulho e fui até a casa dela, pois ela disse que gostaria muito que eu a visse ainda naquele dia.
Chegando lá não a encontrei, fui informado que ela havia saído a pouco e que não era para eu voltar lá nunca mais. Fiquei extremamente confuso, pois no caminho eu imaginava aquela reconciliação calorosa (digna de novela), mas todos esses acontecimentos só contribuíam ainda mais parar frustrar os meus sonhos. Voltei para casa. Depois de alguns minutos ela me ligou de novo, dessa vez de um telefone público, dizendo que sentia muito a minha falta. Desliguei na cara dela, revoltado com suas atitudes, mas ela me ligou novamente chorando e pedindo para ir me ver. Eu tinha que colocar um fim naquilo. Ela falou que estava indo para a minha casa.
Desliguei o telefone e saí correndo para o banheiro. Era necessário encarar a mim mesmo para decidir o que deveria ser feito. Porém, devido a minhas débeis pernas, acabei tropeçando em alguns móveis no caminho e caí no chão de plumas. Plumas, milhares delas, caiam do céu azul claro e tocavam minha pele suavemente. Então me vi em uma varanda, onde havia uma mesinha redonda com uma faca sobre ela. Olhei em volta e várias pessoas me diziam que eu estava preso. Eu tentei responder para elas que não estava preso, mas sim em uma varanda, mas as correntes que me amarravam não permitiam que eu me movesse demais. Agora sim, eu estava preso. Camila apareceu na masmorra escura na qual me encontrava agora, com um pedaço de carne crua e vermelha, dizendo para eu não me preocupar, que ela cuidaria de mim. Agradeci a sua preocupação. Ela sorriu e deixou a carne crua na minha frente, mas eu não podia tocá-la, pois estava acorrentado. Pedi para ela se aproximar mais com a carne, mas ela apenas sorriu e se voltou de costas e saiu sem dar nenhuma satisfação. Acordei com a campainha tocando. Percebi que havia desmaiado. Levantei do chão e enquanto caminhava para abrir a porta eu procurava alguma seqüela do tombo, ao mesmo tempo em que pensava sobre o que havia sonhado.
Camila entrou na minha casa sem pedir licença e me empurrou dizendo para eu nunca mais “fazer isso”. Olhei assustado para ela, mas ela não se alterou. Falei que não havia feito nada, e foi só mencionar isso para ela tentar me dar mais um tapa na minha cara. Não teve sucesso, pois eu segurei o seu braço. Ela tentou com a outra mão, mas consegui desviar. Ela então começou a chorar e falou que me mataria, sem dó nem perdão, pelos pecados que havia cometido. Perguntei o que ela andava tomando, pois aparentemente estava dopada. Ela não me respondeu. Percebi que eu devia fazer alguma coisa definitiva, não só por mim, mas por ela também. E assim a empurrei e ela caiu no chão, chorando. Fui até a cozinha e peguei uma faca. Sim, aquilo terminaria naquele instante. Ela olhou para mim assustada, pois eu já estava com a faca empunhada. Então ela disse que era exatamente isso que ela queria. Assustado com essa declaração eu apenas disse para ela ir embora e nunca mais voltar, caso contrário eu a mataria. Ela parou de chorar e começou a rir, levantando do chão e saindo da minha casa lentamente, rindo cada vez mais alto. Foi a última vez que a vi.
Muito tempo se passou sem notícias da Camila. Depois de muitos anos fiquei sabendo, por um amigo de um amigo, que ela havia se mudado do país. Aparentemente um ex-namorado dela a ameaçou de morte e ela achou prudente se mudar. Então eu ri para todos, lembrando que o mal já vencido estava longe de mim, dizendo apenas: “é... acho que não fui o único”.
Estética

Necessidade

Não faz muito tempo decidi estudar arte. Não do ponto de vista técnico de uma arte específica, como o cinema, que é uma de minhas paixões, mas sim a sua particularidade associada a sua universalidade. E assim surge a estética em minha vida, ou a filosofia da arte, como também é conhecida. A arte, independente de qual for, está sempre presente em nossas vidas. Sempre esteve e sempre estará. Como entender o que ela significa? O que ela é afinal? Como é possível? Várias perguntas perturbavam minha mente, melhor ainda, ainda perturbam. Esse foi um dos combustíveis que me fizeram crer na existência da necessidade de estudar a arte. Hoje ainda. Mas existem outros pontos que devem ser levados em consideração.
São dois pontos essenciais que, na minha opinião, demonstram essa necessidade. O primeiro é como usualmente vemos e lidamos com a arte. As opiniões correntes me incomodam, por já terem sido ultrapassadas, ou por serem apenas frutos de raciocínios abstratos ao extremo, apelando para argumentos infundados recheados de uma pseudo-crítica cultural. Inútil. O segundo ponto é a própria arte contemporânea, o jeito como ela é praticada e os ditos “artistas” com seus conceitos insensíveis. Grave problema. Adianto que o primeiro ponto nasceu na minha experiência individual. O segundo nasceu da associação de algumas idéias com um olhar mais especulativo para a arte atual.
Não foi difícil perceber que ninguém se importa muito com “pensar” a arte. Quando propus essa atividade para muitas pessoas, elas sequer se atreveram a responder. Desenvolvi idéias, propus sistemas e enviei para alguns. Apenas uma pessoa respondeu, com quem atualmente ainda discuto esse assunto. Ninguém se importa com isso. E quais são os motivos? Ninguém gosta de pensar a arte. Um grande problema, pois aqui reside o grupo de pessoas que estão dispostas a simplesmente deixar a arte tocar suas sensibilidades, e assim olhar com prazer para uma obra de arte e dizer: gosto disso. Apenas por ser interessante, externamente é claro. Para atingir uma determinada “arte-em-si” (por assim dizer) é necessário muito mais do que isso. Aliado a isso eu consegui, graças a Internet, diversas opiniões de pensadores anônimos sobre várias questões artísticas (estéticas). Foi impressionante como muitas delas sequer possuem bases racionais. Declarações de que “tudo é arte” servem de recheio para a ignorância a respeito desse assunto. Conclusões são fáceis de tirar. Acertar que é difícil. Mas ninguém parece se importar.
A própria arte não ajuda. No início do século passado, Duchamp alterou nossa visão de arte com seus objetos do cotidiano expostos em museus. Hoje sabemos que, além de ter o seu humor, Duchamp também queria provocar. Fazer as pessoas pensarem a respeito da arte, perceberem que ela é mais que pura sensibilidade. Obviamente ele foi distorcido. Atualmente o que conhecemos como “arte conceitual” é fruto desse movimento iniciado no início do século passado, e que hoje em dia ainda incomoda muita gente. O próprio termo que define esse estilo, a “arte conceitual”, já é em si contraditório. Por um lado interessante, por outro deprimente. Se ele fosse visto realmente como uma contradição e fosse usado para compreender melhor que nos cerca, então seria aceitável. Mas esse termo é apenas utilizado para ilustrar a nossa total falta de compreensão do assunto. A arte é essencialmente conceito e sensibilidade. No primeiro ponto, citado acima, as pessoas não querem discutir arte. Apenas se deixam tocar pelo sensível, e ignoram o conceito (raciocínio) que está associado a ele. A “arte conceitual”, o segundo ponto, sugere o oposto. Aquilo que toca nossa sensibilidade não é importante, mas sim aquilo que vem na nossa mente. Duchamp questionava exatamente essa relação. Hoje em dia essa relação foi esquecida, em lugar de “obras de arte” puramente conceituais, ou seja, o que é sensível não importa, mas sim o que é pensado. Mas esqueceram de Kant e sua crítica aos modernos. Com ele aprendemos que o puro raciocínio, por mais sistemático que possa parecer, cai no vazio extremo quando não é associado a nenhuma efetividade. A “arte conceitual” é isso. Puro devir em torno do nada, pois aquilo que ela realmente é não é ela mesma.
Tudo isso junto cria a necessidade de pensar a arte. O desprezo das pessoas e dos artistas, a falta de consideração para aquilo que a arte vem a revelar. O perigo em vista é a falta de segurança de afirmar aquilo que vemos e pensamos... Não realizar a união do sensível com o moral (Hegel), mas sim pender para um desses lados e assim cair na escravidão de nossos desejos ou na incerteza de nossas fantasias. Em qualquer um desses casos: apenas lamento.

quarta-feira, dezembro 22, 2004

Vida de engenheiro

60 m

domingo, dezembro 19, 2004

Capítulo 08

Sentei no chão com as costas encostadas na porta trancada. Abracei minhas pernas e coloquei a minha cabeça entre meus braços e comecei a chorar. Como era possível tudo isso? Xingava tudo, desde minha mãe que tinha me colocado no mundo até os autores daqueles livros que se encontravam naquela estante.
De repente eu percebi que de nada adiantava ficar ali parado. Também notei que não adiantava fazer qualquer outra coisa, pois eu realmente estava preso. Preso dentro de minha própria prisão. Eu me sentia como uma peça de um jogo maquiavélico. Tudo era tão estranho, mas ao mesmo tempo não tinha como ser diferente.
Levantei. Dei alguns passos até atingir a cadeira cor-de-rosa. Essa cadeira me incomodava demais, pois ela destoava da mesa e da estante, que eram de madeira. Essa cadeira cor-de-rosa... Não lembro quanto tempo fiquei em pé do lado dela contemplando a sua estranheza. Mesmo assim decidi me sentar nela.
Puxei a cadeira um pouco para que ela se afastasse devidamente da mesa. Assim minhas pernas poderiam passar através desse novo vão, criado por esse movimento, e assim eu teria o conforto necessário para executar a minha tarefa. Em outras palavras: sentei na cadeira. Foi como acordar de um sonho. Finalmente eu estava entendendo o porquê daquela cadeira ser cor-de-rosa. Não tinha outra cor possível. Só aquela se encaixava naquele ambiente. Azul? Verde? Nada disso, a cor era, e devia realmente ser, cor-de-rosa. Sorri alegremente diante daquela visão, onde todas as peças do quebra cabeça se encaixavam finalmente. Passei a girar alegremente a cadeira, contemplando todo o cômodo que estava agora em perfeita harmonia. Também comigo.
Depois de alguns instantes eu parei de girar a cadeira, mas ainda olhando atentamente cada detalhe daquela sala. Sorrindo sempre, diante da claridade dos meus pensamentos. No meio de mais algumas conclusões que eu tirava, ouvi novamente o barulho de chave na porta. Levantei apressado, e dei passos largos até o meio daquele escritório. A porta se abriu. A escuridão de lá de dentro não revelou de imediato quem estava por trás disso, mas aquela pessoa deu dois passos para frente, de modo que todo seu corpo fosse iluminado pela claridade do escritório e assim ela se revelasse para mim. Era a moça do balcão de informações.

sexta-feira, dezembro 17, 2004

Vida de engenheiro

60m

sexta-feira, dezembro 10, 2004

Capítulo 07

Caminhei alguns metros naquele corredor escuro tateando a parede. Pelo tato percebi uma rápida mudança de concreto para madeira, pelo menos era o que parecia. Parei rapidamente para me certificar do que se tratava.
- Não, não faça assim – Ela disse.
- Você gosta...
- Não aqui, por favor!
- Sim, sim... Aqui não tem problema – Fui passando a minha mão entre suas pernas.
- Ai, assim não...
- Vem cá – Puxei seu corpo contra o meu – Vem cá, não finja que você não quer.
- Hum.
Minha mão tocou a maçaneta. Através do tato era fácil perceber que se tratava de uma porta. Rodei a maçaneta lentamente, e depois empurrei a porta. Meus olhos imediatamente viram uma linha branca que mostrava o contorno daquela passagem na medida que eu abria, graças a luz que vinha de lá de dentro. Depois de totalmente aberta, meus olhos demoraram alguns instantes para se acostumarem com a luz agora aparentemente farta.
Parecia um escritório bem iluminado. Uma mesa estava no canto, mas não havia janelas. Do lado esquerdo havia uma estante com alguns livros. Do outro lado apenas uma parede branca e no teto um lustre que estava acesso. Não havia outro acesso para aquele local. Percebi uma cadeira cor-de-rosa atrás da mesa, e pensei que não era exatamente o que eu chamava de bom gosto. Mas aquilo não me incomodou. O ar parecia pesado, como se não tivesse ventilação durante muito tempo. Cheiro de livros velhos. Bastou uma rápida olhada pelos livros para perceber que não eram novos. Tudo isso foi visto quando eu ainda estava no corredor, na beira da entrada, contemplando esse novo ambiente.
Aproveitei a luminosidade que vinha desse escritório para olhar novamente para os dois extremos do corredor. De onde eu vinha a luz morria antes de chegar na porta onde entrei. Era assustador. Do outro lado, onde o corredor no qual estava continuava, a impressão era a mesma. Notei que as paredes do corredor eram azul-esverdeadas. Dos dois lados o corredor iluminado morria na escuridão eterna. Aquilo me deu calafrios, então resolvi entrar no escritório.
Bastaram alguns passos para chegar ao centro do cômodo. Eu queria atingir a mesa e verificar as gavetas, sempre é bom tentar descobrir alguma coisa, mesmo quando não se sabe o que se procura. Olhei para a cadeira cor-de-rosa, que parecia recentemente usada, apesar do ar pesado daquele ambiente. Assim que coloquei a mão na mesa ouvi a porta daquele escritório bater fortemente, e logo depois um barulho de chave sendo passado pela fechadura e dando duas voltas. Ao mesmo tempo corri para tentar evitar que fosse trancado, gritando e gesticulando, mesmo sabendo que de nada adiantaria. Minha impressão estava correta. Tentei a maçaneta, mas não teve jeito. Eu estava trancado pela segunda vez.

quinta-feira, dezembro 09, 2004

Capítulo 06

Meu joelho estava machucado. Eu chorava, pois eu sentia uma dor ardente na região do impacto enquanto todos os outros garotos me olhavam. Eles haviam parado o jogo somente para contemplar o meu sofrimento. Ao mesmo tempo eu queria continuar jogando.
O corredor estava totalmente escuro. Não dava para ver nada, apenas ouvir os passos do guarda se afastando da porta fechada atrás de mim. Levantei, segurando nas paredes ao lado, depois de pegar o máximo de objetos que achei, pelo tato, no chão. Não sabia dizer se eram meus ou se já estava ali quando cheguei. Abri bem meus olhos, mas em vão. Um cego no meio de um lugar que não conhecia.
Eu ainda ouvia a minha respiração. Dei um passo para frente, lentamente. Depois outro, sentido primeiro o chão com meus pés para verificar se estava realmente firme. Após alguns passos comecei a acelerar o meu andar, sempre guiado pelas mãos que estavam sendo arrastadas pelas paredes. Tudo era liso. O cheiro não era diferente, também liso. Estranhamente não ouvia os barulhos das máquinas que ouvi do lado de fora. Quando esse pensamento me ocorreu fiquei com medo.
Corri para casa, mesmo com meu joelho raspado. Entrei correndo pela porta da cozinha e abracei a minha mãe em lágrimas. Ela olhou para mim, com aquele olhar doce das mães que confortam os filhos, e era o que eu estava buscando, e me disse, sorrindo um pouco, que não tinha sido nada grave. Realmente, não tinha sido. Mas o conforto materno era algo que é sempre bem-vindo. Com ela, eu não tinha medo.

sexta-feira, dezembro 03, 2004

Capítulo 05

A visão não era bela. Um guarda, roupa escura, óculos escuros, boné preto e cara de poucos amigos. Ele olhava sério para mim enquanto eu tentava descobrir se ele olhava para mim ou não. Sério ele se aproximou e parou a menos de um metro de mim, com as mãos na cintura.
- Qu´cê tá fazendo aqui?
- Apenas de passagem...
- Me acompanhe, por gentileza.
- Mas eu estou apenas de passagem!
- Por gentileza – Ele se aproximou mais ainda – venha comigo.
Ele segurou meu braço com força e começou a me puxar. Eu não queria ir com ele, não queria entrar naquela fábrica, mas era inútil resistir. Ele estava armado, e eu não queria arriscar a minha vida, mesmo sabendo que lá dentro ela poderia correr mais risco do que fora, com o guarda. Confesso que também estava curioso.
Pelo braço o guarda me empurrou para dentro daquele portão azul esverdeado. A fábrica tinha paredes azuis, certamente, mas de perto pareciam verdes. Talvez fosse o jogo de luz, o anoitecer, o entardecer, o amanhecer. O tempo certamente estava dando voltas, mas não as voltas que conhecemos comumente. Aquela cidade não era mais a mesma.
O guarda trancou o portão e me deixou esperando enquanto ele entrava na cabine. Vi quando ele pegou o telefone. Olhei para a rua, através da grade do portão azul esverdeado, e ouvi o guarda dizer “Não vai acreditar quem passou aqui...”. Um pequeno silêncio, eu me sentia como um preso, mesmo nunca ter tido essa experiência. “Não vou dizer quem é, você tem que ver por conta própria para acreditar”. As nuvens formavam um lento balé em cima da cidade, e foi olhando que percebi que estava sendo levado sem o meu controle para um lugar qualquer. Tudo culpa da moça do balcão de informações. Passei a desejar o mal dela. “Tudo bem, tchau”.
O guarda saiu da cabine sorrindo. Ele se aproximou de mim e me pegou pelo braço novamente, mas desta vez mais gentil. Certamente ele sabia que com o portão trancado eu não tinha como fugir, eu devia ter tentado escapar muito antes... Então ele me levou para a fábrica azul esverdeada.
A fábrica tinha vários portões, todos em tons azuis escuros, ao longo de sua estrutura. Porém o guarda me dirigiu até uma pequena porta lateral, que parecia ser a entrada de funcionários, mas não uma entrada principal... Uma entrada longe da linha de produção. O barulho de máquina, que eu não sabia dizer do que se tratava, aumentava na medida que me aproximava. O guarda me deixou na porta e deu as instruções.
- Entre. Vai andando. Até o final.
Antes de eu protestar, ele retirou um molho de chaves azuis do seu bolso preto e com uma delas ele abriu a porta. Lá dentro estava escuro.
- Não vou entrar até você me dizer do que se trata tudo isso! – Eu disse, engolindo o medo.
- Você não tem escolha.
Ele me empurrou para dentro, vencendo meu esforço com esse movimento inesperado. Caí de joelhos no chão do corredor, espalhando todos os meus pertences. Tudo ficou escuro, pois o guarda fechou a porta atrás de mim. Antes de me levantar apenas ouvi o barulho da chave trancando a porta atrás de mim.