terça-feira, novembro 30, 2004

Capítulo 04

- Você vai me deixar!
- Você entendeu errado...
- Entendi errado? Entendi errado? – Ela repetia elevando o tom da sua voz e a expressão do seu olhar – Olhe aqui, olhe para nós! Tudo isso não é culpa sua!
- Claro que não, mas também não é sua!
- Então porque você vai?
- Justamente para que você não sofra as conseqüências de meus atos...
- Não! Jurei estar ao seu lado, e não vou te deixar.
- Você é nova ainda, pode achar outra pessoa rapidamente.
Ela enxugou algumas lágrimas que caiam de seu rosto. Tudo parecia perfeito demais, então de repente surgem os problemas incontroláveis. Eu sei que não tinha mais nada a dizer, ela não tinha culpa. Ela era a melhor coisa que tinha me acontecido, a melhor pessoa que havia conhecido... E junto planejávamos construir um mundo inteiro só nosso, para sermos felizes com nossas manias e defeitos, só nossas manias e só nossos defeitos. Isso que era importante. Mas, pouco antes de tudo isso acontecer, eu havia descoberto que nem sempre podemos controlar nossas vidas. Então resolvi magoá-la, para então ser o canalha da história. Seria mais fácil para ela que para mim.
- Como assim? Você também é novo e eu não quero te deixar. E você fala com um desprezo pela nossa relação que me machuca muito... Não quero saber o que você está pensando sobre isso, eu te conheço mais do que você imagina, eu não vou te deixar, vou atrás de você para onde você for. Também pode ter certe...
- Existe uma outra pessoa!
O silêncio foi insuportável. Tecnicamente não era uma mentira, pois existia sim uma outra pessoa: eu mesmo. Eu, que estaria longe dali, que mudaria não só de lugar, mas também de alma. Uma terceira pessoa nessa relação, clamando para tomar conta de mim e me arruinar. Tornar-me ela, tornar-me outro. Ela abaixou os olhos e começou a soluçar em silêncio. Aproximei minha mão no seu rosto. Ela não me via. Hesitei, não tinha motivos para confortá-la. Eu tinha que ser o canalha.
- E tudo aquilo que você me disse...
Ainda vale! Ainda vale! Queria gritar, berrar. Mas engoli minhas palavras, e apenas fiz a velha de pena. Estava conseguindo.
- Fale dela...
- De quem?
- Dessa outra pessoa...
- Bem, essa pessoa é... Bom, algo um pouco....
- Pára! Não quero saber!
Ela me olhou nos olhos séria, porém percebi a sua alma caindo no vazio que suas crenças haviam deixado após ruírem. E ela hesitou um choro, duas vezes, e depois escondeu o rosto entre as mãos, saindo rapidamente sem olhar para mim. Não podia deixar ela ir, eu tinha que fazer alguma coisa.
- Volte aqui!
Virei meu corpo e encontrei o olhar sério do guarda da fábrica azul.

domingo, novembro 28, 2004

Capítulo 03

Saí daquela rodoviária incomodado. A garota do balcão de informações havia mexido com a minha imaginação, e passei a caminha como sem destino. Havia até mesmo esquecido que o mapa amassado estava guardado, pois naquele momento nada mais importava, apenas a necessidade de ir para algum lugar. Qualquer lugar. Depois de algumas quadras, já distante da rodoviária, parei para descansar as pernas e me dei conta de onde estava.
O lugar cheirava mal. Certamente, pensei eu, deveria estar em uma região industrial. As indústrias sempre contribuíram para que a gente não sentisse nosso próprio mau cheiro. Então percebi que não havia tomado o caminho que a moça do balcão e informações havia sugerido. Será que ela previu isso? Provavelmente ela sabia que eu ficaria incomodado com seu jogo insano, acabando por vaguear sem rumo até cair naquele lugar previamente planejado por ela. Talvez ela fizesse parte de uma gangue que atordoa mentalmente os recém-chegados para que os mesmos tomem rumos sem saber o caminho, para que assim caiam nas mais perigosas armadilhas. Temi pela minha segurança, mas apenas por instantes. Toda essa idéia, depois de bem refletida, pareceu absurda. Mas eu ainda acreditava que ela havia me mandado para esse lugar com algum propósito.
Não reconhecia as fábricas, mas reconhecia o lugar. Antes eram campos verdes nos quais costumava brincar com meus amigos de infância... Então lembrei de cada um deles, de todos aqueles momentos que passamos juntos. Fugindo das aulas, roubando frutas na feira, correndo e inventando nossos próprios jogos. Provavelmente, se eu os visse, seus rostos seriam como de estranhos. E pensar que um dia já fomos tão íntimos, a ponto de confessarmos nossos segredos mais obscuros uns para os outros. Era uma pequena equipe, de cinco garotos, incluindo eu.
Ouvi um sinal alto que me tirou das minhas lembranças. Uma fábrica estava fechando o expediente. Seria assim já tão tarde? Não, talvez fosse apenas a hora do almoço. O tempo não parecia correr em apenas um sentido. No fundo é sempre assim, caso contrário não existiria o passado e nem o futuro. Em pé, no meio da rua, pude ver a movimentação que aumentava de uma das fábricas. Uma provável metalúrgica, ou uma fábrica de móveis. O cheiro era ruim. A visão era cinza, por incrível que pareça, era azul. Todas as fábricas normalmente têm tons cinza, mas aquela era azulada. Alguma coisa estranha ocorria ali.
Não queria voltar pelo caminho que havia percorrido, por isso decidi andar até encontrar alguma viela pela qual poderia retornar. Não necessariamente, poderia acabar do outro lado da cidade, para mim aquilo não importava. O problema é que eu tinha que passar na frente dessa fábrica azul. Essa idéia não me agradava, mas era menos pior que a idéia de fazer meia volta e me dar de cara de novo com o medo que senti pouco antes. Como nossos maiores medos sempre dominaram nossas vidas, fui em frente.
O portão azul estava esverdeado. Um guarda estava em sua cabine me observando. Meu olhar se desviou do dele. Não parava de caminhar. Ele se levantou e eu senti um frio no meu estômago. Estava passando bem na frente do portão azul esverdeado, então decidi caminhar mais rápido. Ouvi um barulho de porta se abrindo, que se confundia com o barulho surdo das máquinas. Dei três passos e ouvi o portão se abrir, um barulho metálico. Dei um passo e ouvi uma voz masculina:
- Ei! Você! Volte aqui!

quarta-feira, novembro 24, 2004

Capítulo 02

Diante do estranhamento daquela selva de pedra, onde apenas reconhecia poucas mudas, decidi ir até o balcão de informações da rodoviária. Alí estava uma atendente, com olhos claros e cabelo mal pintado de loiro, sentada em sua candeira do lado oposto do balcão, cuidando carinhosamente de suas unhas. Ela não levantou o olhar quando eu me aproximei e não parecia notar a minha presença. Seu rosto tinha algumas sardas, o que a deixava com um ar mais de menina que de moça. Porém as curvas do seu corpo não negavam a sensualidade das mulheres jovens. Coloquei minha mochila no chão, encostada no balcão. Pocisionei meus braços no balcão, que era bem largo e proporcionava espaço suficiente para a minha acomodação. Ela continuava olhando para as próprias mãos. As pessoas passavam como se nada daquilo existisse. Limpei a garganta e ela rapidamente tirou os olhos da sua simples tarefa e se voltou para mim.
Seus olhos ficaram ainda mais claros, acho que devido ao jogo de luz do lugar. Mas a crença de que seu olhar brilhou ao me ver era extremamente agradável para ser abandonada de completo. Ela permaneceu muito pouco tempo me olhando, mas percebi pela movimentação do seu globo ocular que ela não apenas encarou o meu rosto, mas também todo o meu corpo que estava visível para ela. Provavelmente notando as roupas e tecendo julgamentos instantâneos sobre minha posição social, meu humor, minha personalidade, meus gostos, etc. Tudo isso durou menos que um pensamento, e logo depois ela sorriu dizendo:
- Olá!
Sua voz era suave. Agradável.
- Gostaria de algumas informações...
- Certamente...
- Por acaso você tem, ou sabe onde posso encontrar, um mapa dessa cidade?
Enquanto falava ela me encarava. Ela olhava para mim como se estivesse descobrindo alguma coisa, um olhar estranho. Em princípio acreditei que ela estava abismada pela minha beleza física, mas depois lembrei de quem eu realmente era para perceber que isso era impossível. Ela olhava e o seu sorriso parecia congelado, como uma máscara que fica sempre na mesma posição, independente da expressão atrás dela. Porém esse sorriso foi sumindo lentamente, e já havia passado alguns instantes desde que eu havia pedido o mapa. Ao contrário do começo, agora ela não retirava os olhos dos meus. Finalmente ela ficou séria, encarando insistentemente. Então eu disse:
- Então...?
Ela pareceu acordar de um sonho. Piscou três vezes dizendo:
- Acabando de chegar...
- Agora a pouco, nesse instante...
- Dessa vez precisa de um mapa.
- Sim, preciso de um ma... Como assim "dessa vez"?
- Antes você não precisava.
- Como você sabe?
- Eu sei de muitas coisas.
- Mas como?
- Eu sou a moça do balcão de informações.
Isso no começo não fazia sentido. Como, apenas olhando para o meu rosto e parte de minhas roupas, ela havia concluído que eu já morei alí antes? Olhei atentamente para ela. Seria possível que ela fosse uma velha amiga de infância que me reconheceu, mas eu não estava reconhecendo?
- Mas sim, eu tenho um mapa aqui caso queira consultar.
- Você me conhece?
- Conheço.
- Desde quando?
- Desde que você limpou sua garganta para me chamar.
- Mas antes disso?
- Antes disso eu estava pintando minhas unhas...
- Não, antes disso, muito antes... Como você sabe que eu já morei aqui?
- Eu sou a moça do balcão de informações.
Fiquei incomodado. Como seria possível? O que isso queria dizer realmente? Então fiz a pergunta que saltou na minha mente como um absurdo mais improvável de todos:
- Isso quer dizer que, para informar as pessoas, você deve saber de tudo?
- Sim.
Ela não sorria. Se lenvatou da cadeira e se abaixou atrás do balcão pedindo para eu aguardar um pouco até ela pegar o mapa que eu havia solicitado. Depois de alguns instantes, ela me entregou o mapa e falou que eu podia ficar a vontade para consultá-lo. Tudo estava estranho, então eu perguntei:
- Como eu faço para chegar lá?
- Pega essa rua e segue reto. Você vai reconhecer algumas casas, alguns prédios comerciais. Mudaram de dono, mas a fachada continua a mesma. Então você vai virar a esquerda e continuar andando pela rua que você não conhece, pois ela é nova. No final dela você vai reconhecer mais algumas casas, uma delas inclusive foi onde você...
- Como você sabe tudo isso? Eu nem disse para onde eu ia!
- Eu sou a moça do balcão de informações. Eu informo as pessoas.
Permaneci em silêncio enquanto ela olhava em meus olhos. Não, não era possível. Ela sabia quem eu era, isso estava sem dúvidas, mas eu não a reconhecia. Por que ela não se apresentava de uma vez? Então perguntei:
- Qual o seu nome?
- Qualquer um, tanto faz. Eu sou a moça do balcão de informações.
- Então é assim?
- Vai lá, você vai ter uma surpresa. Pode levar o mapa, para você eu deixo.
- Porque você vai deixar?
- Eu sei que ele vai voltar para mim.
- Como você sabe? Quero dizer, além de você ser a moça do balcão de informações?
- Tudo volta um dia.
- Nem tudo...
- Você voltou.
Amassei o mapa e enfiei na minha mochila. Saí rapidamente da rodoviária, olhando para trás. Ela me acompanhava com os olhos, sem sorrir, sentada do outro lado do balcão. Ela realmente deveria me conhecer. Eu também devia conhecê-la. Mas minha mente só dizia uma coisa: Quem era ela, e por que ela fez isso?

terça-feira, novembro 23, 2004

Capítulo 01

Do ônibus tudo parecia bem menos tranquilo. A movimentação nas ruas aumentou um pouco. Não era como eu me lembrava. As ruas pareciam mais escuras, diferente de quando eu andava por elas de bicicleta. E o ônibus passava por lugares que meus olhos não reconheciam mais. Fazia muito tempo que eu havia partido. Às vezes percebemos que nosso lugar é longe de onde estamos. Quando isso acontece devemos tomar algumas decisões em nossa vida. Eu tomei a minha, fiz a minha escolha. Paguei o preço por ela também, e não foi nenhum pechincha. Depois de tanto tempo eu voltava ao lugar que, uma vez pelo menos, acreditei pertencer.
A rodoviária não era a mesma. Estava maior, mais suja e mais fedorenta. Desci do ônibus e suspirei fundo, a viagem havia sido longa. Uma viagem que durou muitos anos. Ninguém me esperava, ninguém sabia que eu viria. Isso me fez sorrir, um sorriso nervoso, indeciso. Claro, naquele momento eu estava com medo, como todo homem fica quando está diante do incerto, ainda mais um incerto que ele conhece bem... Qual seria a reação deles? Eu pensava comigo, e minhas dúvidas só aumentavam a minha ansiedade. Flores ou pedras, alguma coisa necessariamente deveria acontecer.
Andei pela rodoviária tentando reconhece o lugar a minha volta. Num dos cantos havia um sujeito velho, sentado, vestindo trapos. Ele tinha barba grisalha e mal feita, um olhar triste e fechado. Ninguém parecia notá-lo, mas em outros tempos ele seria uma figura bizarra, que me daria medo, e também seria motivos de comentários naquela cidade por várias semanas. Tudo estava bem diferente. Maior e pior. Nunca apreciei muito as cidades grandes, e talvez esse tenha sido um dos motivos que me fizeram voltar. Mas ainda estava longe de ser uma cidade grande, como as outras que conheci. Mas pelo menos essa eu conhecia um pouco melhor. Até aquele momento eu ainda acreditava que conhecia alguma coisa.

segunda-feira, novembro 22, 2004

"(...) como há em nós a priori uma certa forma da intuição sensível que assenta sobre a receptividade de nossa capacidade representativa (da sensibilidade), o entendimento pode então, como uma espontaneidade, determinar o sentido interno, de acordo com a unidade sintética da apercepção pela diversidade das representações dadas, e conceber a priori a unidade sintética da apercepção do que há de diverso na intuição sensível, como condição à qual necessariamente devem sujeitar-se todos os objetos de nossa (humana) intuição."
(Kant, Crítica da Razão Pura)

terça-feira, novembro 16, 2004

Intelectual Passivo

Eu odeio os intelectuais passivos. Essas pessoas, como o próprio nome sugere, são estáticas, paradas. Intelectualmente falando é claro. É diferente da pessoa ignorante, pois o ignorante simplesmente ignora. O intelectual passivo não ignora, o que pode ser pior. O aprendizado de uma pessoa intelectual passiva é feito através daquilo que cai em suas mãos. Ou na sua frente. Nada mais. Não busca, por conta própria, uma novidade, aprender coisas diferentes. Não é ninguém que acorda um dia e pensa: "hoje vou aprender sobre computadores". Não, o intelecto passivo se contenta com o incerto, com o que o momento presente pode oferecer. Se oferecer computadores, então será sobre computadores. Se oferecer sobre nada, então será nada.
O intelectual passivo é aquela pessoa que acha que a escola o educou, e tudo o que ele aprendeu na sala de aula basta como bagagem cultural. O intelectual passivo freqüenta a universidade pensando somente em sua vida profissional. Ele mesmo fica bravo quando mencionamos que a universidade não é um lugar para todo mundo... Uma pessoa desse tipo fica triste ao pensar sobre a sociedade, as injustiças, as diferenças e os problemas que rondam o mundo, sempre com uma resposta na ponta da língua para todas as suas perguntas e dúvidas. Se é que essas pessoas têm dúvidas. Um intelectual passivo não vai ao cinema sem ser convidado, não lê livros que ninguém conhece, mas está sempre por dentro do que acontece nos jornais. Afinal de contas, um jornal volta e meia cai em suas mãos. Um intelectual passivo admira arte por gosto, e não por ser arte. Sem julgamentos, é claro. Ele mesmo procura fazer alguma espécie de arte, mas que sempre morre, fraca de substância espiritual. O intelectual passivo aprende quando lhe ensinam e não quando ele quer aprender. Ele não quer aprender nada, ou finge que quer. Ele está em todo lugar e se sente diferente por simplesmente saber que aprende alguma coisa, sente-se importante por isso. Porém, como ele mesmo não pode cair nas suas próprias mãos, mal sabe quem realmente é.

quarta-feira, novembro 10, 2004

Não morri, para a tristeza daqueles que um dia sonharam que o meu silêncio representaria o meu descanso eterno

Continuo vivo. Semi-mortal com os braços abertos, pendendo como asas, diante de um abismo mental. Passos para quê? Caminhar é para os fracos, correr é para os covardes. Eu vou voar. Flutuar não é difícil, desde que se tenha tudo o que é necessário para isso. O retorno eterno daquele que nunca foi. Diante de milhões de possibilidades, diante da correria do dia-a-dia. Ninguém sabe, ninguém nunca saberá. A pergunta continua, as dúvidas ainda corroem a alma, a mente, a consciência. O chão não é o meu lugar. Acho que nunca foi... Acho que nunca será.

terça-feira, novembro 02, 2004

o nosso universo é sempre infinito

mas mergulhado em uma profunda incerteza

que aos nossos olhos não parece ser pequena

e mesmo que tenhamos identidade, somos isso:

seres vivos cheios de parasitas subjetivos

morando em subúrbios imundos e decadentes

nos alimentando apenas com o que resta

de nossos desejos imensos e insistentes

sem perceber que esse é apenas um dos lados

de um caminho sem volta ao verdadeiro

que passa por galerias de arte até bueiros

unindo em qualquer lugar o puro e o sujo

fazendo de tudo o todo que somos nós mesmos