sexta-feira, maio 19, 2006

J & J

O mundo é um lugar muito estranho. Acho que muitas vezes as pessoas criam realidades que estão inseridas apenas em suas mentes e, com suas idéias limitadas, procuram por estruturas cheias de regras para dizer aquilo que, muitas vezes, sequer foi dito.

Jonas era um cara assim. Não como aquele da baleia, mas simplesmente o que achava que todas as baleias podem ser chamadas de mamífero por que um dia alguém escreveu que podia. Claro que ele não acreditava em tudo o que lia, mas mesmo assim baseava toda a sua vida em folhetos estranhos distribuídos em pontos de ônibus e coisas parecidas. E depois de lê-los ia para casa e sentava em seu sofá com um copo de coca-cola para assistir seu programa de televisão favorito. Algo que tinha a ver com seres humanos geneticamente modificados para fazer parte de algum exército especial, mas que no fim se rebelaram contra o governo que os criou para salvar o mundo. Era tudo tão simples.

Jonas tinha o costume de deixar cuidadosamente duas garrafas médias de coca-cola na geladeira. Ele brigava com todos na sua casa que quisessem as mudar de lugar. Mas elas não eram simplesmente guardadas baseado em apenas mais uma “frescura” de sua mente, mas um estudo cuidadoso sobre a transferência de calor. Explico: Jonas gostava de sua bebida parcialmente gelada, não muito e nem tão pouco. Por isso realizou diversos estudos e chegou à conclusão que o período para gelar deveria ser divido em dois. O primeiro era quando a garrafa ficava na parte inferior da geladeira, imediatamente acima do lugar das verduras. Dessa forma, recém colocada com a temperatura do ambiente, a garrafa passaria por um processo de resfriamento gradual, chegando perto do ponto ótimo. Uma vez nesse ponto, a garrafa poderia ser imediatamente transferida para um compartimento superior, mais próximo do congelador, onde é mais frio. Depois que o equilíbrio térmico é atingido, a garrafa pode ser retirada para o consumo. Essa era a maior razão para manter duas, não três e nem quatro, garrafas na geladeira. Assim que ele fosse pegar uma delas, a que estava embaixo passava para a posição de cima e o lugar na parte de baixo era preenchido por uma nova garrafa na temperatura ambiente e pronta para sofrer todo o processo de resfriamento até a hora do seu consumo final.

O ritual para ver televisão também era religioso, mas não tanto quanto as garrafinhas de coca-cola. Isso era praticamente impossível, pois as emissoras viviam trocando os programas de horário. Alguns programas acabavam, outros começavam, e isso fez Jonas se adaptar muito bem a essas alterações. Então certas coisas podiam variar, como o dia da semana e o horário que ele ligava a televisão. Apesar disso todo dia ele estava presente.

Mas Janaína era um pouco diferente. Um pouco romântica e adaptada ao que desse e viesse. Não tinha medo de enfrentar os próprios medos, era mais ou menos isso que ela falava. Ainda mais depois que começou a fazer terapia... Mas diziam que nem era necessário para ela. Janaína dava risada, pois sabia que não era preciso ter “problemas” para fazer terapia, mas simplesmente ter em mente que alguma coisa nela poderia ser alterada. E o que ela menos gostava em si mesma era sua timidez. Mas já estava trabalhando nisso.

Janaína sempre foi uma garota estudiosa, com as melhores notas da sala. Era admirada pelas colegas, que muitas vezes pediam ajuda para incrementar as notas em algumas matérias. Ela estava sempre lá para ajudar, pois achava que a amizade era algo que vinha acima de tudo. Isso ela tomava como certeza... Não sabia muito bem, mas um amigo dela disse certa vez que Aristóteles havia dito que a amizade é superior ao amor pelo fato de ser pura, não possuir ciúmes. A verdadeira amizade não é egoísta, não deseja a pessoa somente para ela, como o amor faz, mas sim é aberta, pois sabe que nada que se passa em um relacionamento pode mudar sua essência. Ela não tinha certeza disso, mas acreditava ser mais ou menos que fosse assim.

Jonas também era um rapaz tímido. Nunca teve muito sucesso com as garotas. Uma vez se apaixonou perdidamente, quando estava no colégio, e a garota parecia gostar dele também. Conversavam bastante, davam risadas e tudo aquilo parecia que ia durar para sempre. Até mesmo nas férias eles se viam com certa freqüência, o que o deixava muito feliz. Mas um dia Jonas a viu andando de mãos dadas com outro rapaz. Foi a primeira vez que sentiu um aperto no peito e vontade de desaparecer do mundo. Exatamente no mesmo instante em que percebeu que deveria tomar providências para que aquilo não acontecesse de novo. E realmente tomou. Resolveu nunca mais se apaixonar.

Ela, como eu já disse, era um pouco diferente. Desde sua época de ginásio já enfrentava os monstros da paixão. O primeiro foi um professor. Janaína não conseguia prestar atenção em outras coisas, mas somente no tom da voz dele e no jeito que ele andava. O professor era solteiro, brincalhão e jovem demais para assumir a responsabilidade de ensinar matemática. Mas ele assumiu muito bem. Ainda mais para ela, que apesar disso não conseguia acompanhar as aulas. Por isso ela se dedicava muito na matéria, para conseguir boas notas e ser elogiada por ele diante de toda a classe. Mas essa paixão se foi com a primeira gota de chuva da primavera.

Depois ela passou a olhar para os garotos mais velhos. Um deles, loiro de olhos claros, despertava certo interesse. Ela se via andando e sorrindo como louca no meio da rua, perdida em seus pensamentos que eram uma soma de imaginação e esperança. Mas da mesma forma que tinha chegado tinha desaparecido. E depois de envelhecer um pouco já não perdia muito tempo com relacionamentos efêmeros. Sabia o que os garotos queriam, e isso não era qualquer um que ia ter.

Jonas tinha vários amigos, que eram “alguns loucos da faculdade”. Ele não gostava muito de sair, achava que sua felicidade poderia cair no seu colo, mas isso não dizia para ninguém. Mas sofreu muita pressão dos seus colegas até que resolveu encarar o mundo noturno. Nessas horas ele deixava sua coca-cola de lado e arriscava beber até mesmo fanta ou sprite. Ninguém sabia, mas isso o fazia sentir importante.

Janaína estava perdida entre as boates e as festas com os amigos do cursinho. Sabia que todos eles iam se separar depois que entrassem na faculdade, por isso procurava se envolver o menos possível. Gostava mesmo de colocar Radiohead para tocar e sonhar acordada com seu futuro namorado. Sim, ela sabia que namoraria mais cedo ou mais tarde, com alguém especial. Tinha que ser especial.

Um dia ele viu no bar uma menina bonita. Não era nada demais, apenas bonita, como tantas outras que ele via na rua. Os amigos encheram tanto o saco dele que ele não resistiu e foi até lá falar com ela. Eu já disse que Jonas também era um cara tímido? Então, a menina também era. Ela até estranhou que um cara como Jonas pudesse falar e por isso o ajudou nos assuntos que ele puxava. Não por sentir pena dele, ou ter se sentido atraída, mas apenas por tentar conhecê-lo melhor. A menina acreditava fielmente que seu futuro namorado estava perdido em algum lugar, de repente poderia ser ele. Ela não sabia, e ela sabia que não sabia, como Sócrates.

E Janaína continuava sendo abordada por garotos estranhos em todos os lugares. Mas uma vez ela realmente deu sorte, mesmo sem saber logo no início. Um rapaz estranho bateu com as pontas dos dedos no seu ombro. Ele era uma figura singular, parecia que nunca tinha saído antes. Tinha um copo de fanta na mão, e naquele lugar isso era totalmente estranho. Ela sabia disso, mas resolveu não comentar nada, pois ele parecia um pouco nervoso. Ela também sabia que não sabia nada a respeito dele, por isso resolveu ajudá-lo para poder, de repente, conhecê-lo melhor. Quem sabe? De perto ele não era feio, muito pelo contrário, parecia ter uma “beleza interior” digna de ser explorada. Era quase um exemplo de personagem de livro de auto-ajuda. Daqueles que a gente torce para se foder, mas sempre dão a volta por cima.

Então Jonas passou a freqüentar mais vezes aquele lugar. E quase sempre a encontrava. Mas ele era um cara de manias estranhas, e estava tomando consciência disso. Por isso sempre conversava com essa menina, que acabou se tornado uma boa amiga, pedindo conselhos de como mudar. Ela insinuou uma vez que uma ajuda profissional poderia ser uma boa solução. Ela mesma já tinha experimentado com vários resultados positivos, mas ele fingiu que não entendeu. Ele tinha medo descobrir o que não gostaria, mas gostava de conversar com ela e cada noite naquele lugar era como uma terapia. Depois de alguns encontros eles já estavam rindo e conversando amigavelmente sobre qualquer assunto.

E Janaína não ligava muito. Sabia que aquele garoto era estranho, mas não via nada de especial nele. Mas ele sempre estava lá, com um copo de fanta na mão e sempre indo falar com ela quando a via. De vez em quando, somente para fugir um pouco daquela rotina, ela ia para outro lugar. Ele sempre perguntava os motivos dela não ter aparecido, mas ela sempre mentia. Mas alguns encontros se passaram e o garoto começou a se revelar cada vez mais complexo. Ela passou a achar aquela personalidade um tanto quanto fascinante, pois nunca sabia dizer o que ele ia fazer ou pensar. E isso a deixava um pouco incomodada... Em um bom sentido. Ele foi se confessando aos poucos, e ela gostaria muito de dizer para ele procurar ajuda profissional, pois com ela havia funcionado. Mas nunca chegou a dizer isso, pois poderia ofendê-lo.

Jonas passou a rever todos os seus conceitos, principalmente o de felicidade e amor. Até mesmo aquelas garrafas de coca-cola estavam cada vez mais frágeis. Sem querer pegou uma fora do lugar, longe da temperatura ideal. Mas ao invés de gritar e reclamar com toda sua família, ele resolveu experimentar e percebeu que não fazia tanta diferença se estava embaixo ou em cima. Isso para ele foi um choque, mas se adaptou rápido e sua mãe ficou feliz por não haver mais lugares reservados na geladeira.

Mas ela continuava com sua batalha mental. Aquele rapaz era estranho demais, mas com o tempo e o número crescente de encontros ele foi entrando na “normalidade”. Pegaram uma forte amizade, mas que não saía daquele ambiente. E Janaína via que muitas coisas que ela falava para ele surtiam um grande efeito. Era como se ele não falasse aquelas coisas para mais ninguém. Isso a deixava feliz, fazia ela se sentir importante. Mas um dia ela não resistiu e perguntou “porque caralho você toma tanta fanta?”.

Então Jonas já tinha deixado as garrafas em paz e esquecia dos seus programas favoritos enquanto pensava naquela menina. Não lia mais folhetos nas ruas, pois agora realmente acreditava que eles não faziam mais diferença nenhuma. E aquela menina achava os folhetos ridículos. Então, assim como ela havia sugerido, começou a experimentar coisas novas. Resolveu começar com cerveja, mas era amarga demais. Então tomou vinho e foi um desastre! Ficou bêbado, levou bronca dos pais, era motivo de piada para os amigos e sentia muita dor de cabeça no outro dia. Detestou, mas não desistiu. E continuou tentando até se acostumar. E um dia aquela menina perguntou por que ele tomava tanto refrigerante assim. E ele respondeu que era por causa da ressaca, que naquela ocasião especial não era mentira.

E ela riu. Ela tinha certeza que ele havia mentido, mas ela não dava bola. Já eram amigos para que ela deixasse isso acontecer. E Janaína já havia pensado nele várias vezes, imaginando como seria bom receber ligações dele e conhecê-lo fora daquele lugar.

Então Jonas tomou coragem. Assim que a viu pediu o seu telefone. Ela olhou para os céus dizendo que já estava na hora disso acontecer e os dois deram boas gargalhas. Passaram a fazer outras coisas, como ir ao cinema ou a restaurantes. Já andavam de mãos dadas e depois dos filmes trocavam alguns beijos. Ele então desistiu de não se apaixonar e se deixou levar.

Janaína estava nas nuvens. Aquele rapaz pediu seu telefone, depois de enrolar muito, e agora já conversavam mais vezes. Ele até mesmo chegou a ir visitá-la em casa, onde prepararam pipoca de microondas e assistiram a um filme muito ruim. Davam risadas e beijos apaixonados enquanto estavam deitados no sofá da sala.

Jonas conseguiu o que queria, mesmo sem saber: uma garota interessante que, acima de tudo, era sua amiga, que conseguiu livrá-lo de todas as regras ridículas que ele seguia. E com Janaína foi parecido, com a diferença que ela sabia o que queria. Talvez Aristóteles não estivesse assim tão certo.

Mas o que a história de Jonas tem a ver com a de Janaína?...

Nada.

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