quinta-feira, maio 19, 2005

anões de jardim cantando ilariê

Olhe moço, a gente veio de longe. Chegamos aqui e as portas estavam fechadas. Por isso eu bati daquele jeito... Não foi desespero não. Posso falar? Deixe explicar certinho para você entender bem. Acontece que existe um grande buraco na minha blusa, pode ver? Não, esse é onde eu coloco a cabeça... Esse menor aqui, no braço. Aconteceu que no ônibus esbarraram em mim. Não foi de propósito, eu sei, com o ir e vir do balançar mecânico do ônibus eu sei que essas coisas podem perfeitamente acontecer. Por conta desse mesmo balançar nada harmônico e barulhento é que esse furo aconteceu. Várias vezes esbarraram em mim, nesse mesmo lugar, nesse mesmo braço. Se bobear eu ainda estou com o braço roxo. Mas isso não importa agora. O que importa é quando acontece uma vez você deix a, acontece duas e você esquece, acontece a terceira e você olha feio, na quarta você muda de posição e na quinta você tem dois caminhos: pode mudar de lugar, ou conversar com a pessoa que está te incomodando. Como o ônibus estava lotado, eu não podia fazer a primeira opção. O jeito foi me virar e olhar bem feio para a pessoa de modo que ela percebesse que estava me atrapalhando. Olhe moço, não me julgue pelo o que vou falar. Acontece que me virei e então eu vi o anjo mais lindo do céu ali do meu lado, na Terra. Foi paixão mesmo, essa coisa que vem de dentro. O senhor poderia buscar água para mim? Por gentileza? Não querendo ser abusado, mas já abusando. Foi por isso que bati aqui, para pedir ajuda. Olhe esse buraco! E pensar que tudo começou por conta dele... Eu fiquei embasbado mesmo, pois essa blusa aqui é nova! Demorei horas rodando lojas e mais lojas atrás de alguma coisa que convinha. Fiquei bravo. Mas quando virei e a vi... Tudo mudou da noite fria e chuvosa de segunda-f eira para um fim de tarde quente de sábado. Ela era linda, seu moço. Seus olhinhos claros logo se encontraram com os meus, e eu notei imediatamente as curvas delicadas de seu rostinho. Ela imediatamente fez um cara de espanto diante do meu semblante que estava provavelmente assombroso. Logo depois ela pediu desculpas, com uma voz suave e tranqüila, mas que transportava pelo ar uma incrível carga de arrependimento. Olhou para baixo, tímida. Claro, meu coração derreteu nessa hora. Eu sorri e falei que não tinha problemas e me virei novamente, com medo que o meu olhar insistente pudesse deixá-la ainda mais constrangida. Claro, seu moço... Como? Moreninha, com os cabelos lisos até mais ou menos os ombros. Notei tudo rapidamente, e olhando pela janela do ônibus eu lembrava dos detalhes dela, que estava logo ao meu lado. Eu podia sentir seu cheiro... E fiquei feliz por estar ali. Então ela me cutucou pela sexta vez, e eu olhei novamente. Ela pediu desculpas de novo e sussurrou no meu o uvido algo do tipo: “hoje está difícil”. Não lembro bem, mas ela queria dizer que não tinha como ser diferente, que ela ia continuar me cutucando. Sinceramente? O ônibus estava realmente muito lotado, e era difícil se mover lá dentro. Mas ela podia manifestar uma determinada intenção de alterar sua posição, o que não aconteceu. Você não acha? Ela permaneceu lá, me cutucando pela sétima, oitava, nona... Até que perdi as contas. A blusa já estava furada. O quê? Com um chaveiro estranho que estava no zíper da mala dela. Pois é, mas o chão do ônibus estava que era só pés sujos. De qualquer forma eu não estava mais me importando com esse furo aqui. Eu respondi para ela dizendo que realmente aquilo estava uma “merda dos infernos”. Ela abriu os olhos diante do meu vocabulário respeitadíssimo e elogiado nas mais altas rodas sociais. Então sorri, e também pedi desculpas dando a desculpa que estava cansado, que o dia tinha sido cheio... Essas coisas. Calma, eu bati aqui justamente por conta disso! Por conta da pressa! Olhe, não. Não estou fugindo, estou perseguindo! Ela? Não... Ela não. Ela foi para casa, eu sei onde ela mora agora. A gente conversou, você sabe... Durante aquele trajeto, um pouco depois, quando o ônibus esvaziou um pouco e ficamos frente a frente. Você não tem nada a ver com isso seu moço, você não estava lá. Não precisa ficar com medo, é apenas uma faca. Não, não vou usar nada disso com o senhor... Obrigado pelo copo d´água. Mas como eu dizia, ela vinha de longe e ia para mais longe ainda. Eu também, veja o senhor, moro aqui perto e isso aconteceu lá para os lados das indústrias, que é onde eu trabalho. Essa faca sempre está comigo, para casos como esse. Talvez, não queria usar ela, mas há necessidade. Conversamos bem seu moço, contra ela não tenho nada. Mas aconteceu que descemos no mesmo ponto, logo ali embaixo. Na descida eu vi o senhor passando por ali, voltando com uma sacola de mercado. É, não é engraçado? Então eu a vi olhando para o senhor. M as um olhar estranho, seu moço... Tanto que não agüentei de curiosidade e perguntei: “Mas que porra é essa?”. E ela não me respondeu logo de cara. O senhor, seu moço, entrou aqui nessa porta e ela então me confessou um segredo. Fofocas, como ela mesma acrescentou no final. Não, não posso falar. Mas é sobre você e uma tal de Vânia. Claro, claro. Eu sei, é engraçado. Não, o seu moço não precisa se justificar para mim, eu estou apenas de passagem. Tudo bem. Acontece que outra coisa aconteceu. Ali, no meio daquelas sombras, pode ver? Foi quando... Então está bem. Eu entendo. Desculpe incomodá-lo e obrigado pela água. Até mais.

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