quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Eu sempre imaginei que as coisas ficariam ruins. Fui preso e rasparam o meu cabelo. Eu odeio arrumar o meu cabelo, por isso consegui dormir tranquilamente na cela onde jogaram minhas roupas no chão exclamando: "Aqui a parada é outra!". Mas eu sabia que meu cabelo ia crescer, como acontece sempre. Nos dias que se seguiram eu procurei fazer amizades, conheci grupos, facções e marginais solitários. Enfim, eu estava no meu meio e feliz. Mas meu cabelo não parava de crescer.
Indaguei meus colegas de presídio a respeito do cabelo, e todos falaram que cada um se vira sozinho com isso. O presídio não era grande. Resolvi me virar. Em uma das visitas pedi para minha mulher trazer uma máquina para raspar o cabelo, pois eu odeio arrumar cabelo. Ela, chorando a minha sorte, disse que faria de tudo para aliviar o meu sofrimento. Comparado com viver ao lado dela eu estava no paraíso. Dias depois recebi a máquina, com grande alívio pois o meu cabelo já estava me incomodando.
Os primeiros cortes foram um desastre. Não conseguia olhar no espelho e manusear a máquina ao mesmo tempo. Por isso usava sempre boné logo depois dos cortes, mas depois acostumei com a situação, pois meus colegas de presídio tinham cabelos piores que os meus.
O tempo passou rápido e eu peguei prática. Já tirava algumas pontas, inclusive de trás, utilizando jogo de espelhos, com uma tesoura. Meu corte de cabelo começou a fazer sucesso. Nos dias de visita eu não era visto como um presidiário, pois meu corte de cabelo parecia com as pessoas de fora. Foi só nessa situação que eu percebi como era fácil notar "pela cara" quem era presidiário ou não.
Alguns colegas de crime, como carinhosamente chamávamos a nós, marginais, pediam para eu cortar seus cabelos. Fazia essa tarefa com grande prazer, pois ao mesmo tempo que é bom ser útil no presídio nunca é demais aprender um novo ofício. Também fiquei bom no corte de terceiros, e a minha criatividade era admirada. Um de meus colegas sempre pedia algo diferente, e sempre deixava o cabelo crescer bastante para que eu pudesse fluir com minha arte livremente diante da abuntância de matéria prima. Sempre satisfeitos.
Um dia o chefe de uma respeitada facção me chamou para a cela dele. Fui, com o rabo entre as pernas, pois poucos saíam de lá vivos. Mas eu já tinha me mente as suas intensões: cortes de cabelo. Não deu em outra, com tesoura e pente na mão eu fui imediatamente intimado a cortar o seu cabelo, sob a pena de morte caso cometece algum erro. Tremendo, cortei o cabelo dele. Tremer, para os barbeiros, é um péssimo negócio. Mas, sabendo de tudo isso, resolvi aproveitar a fragilidade física e criar um "new look", que, na cabeça do chefão, poderia me promover. Depois de pronto, forneci o espelho sujo para ele se ver. Ele viu, sorriu e aprovou o novo penteado que, como previa, foi um sucesso entre os presos.
Era só alegria, fui até mesmo chamado para cortar o cabelo do diretor do presídio. Os guardas sorriam para mim e eu ganhava cigarros e favores sempre. Como eu não fumava, e não fumo, poderia ser considerado um cara "rico". Ganhei confiança e os chefes das quadrilhas, mesmo opostas, sempre pediam conselhos e orientações. Fui responsável por várias mortes, e usava a minha influência para atingir o topo.
Criei a minha própria facção, que era neutra. Muitos aderiram, e as demais facções não "batalhavam" antes de pedir a minha permissão. Abri uma "escolhinha", onde passei a ensinar o meu ofício para os mais jovens. E assim se passaram os 20 anos que eu tinha que cumprir.
Planejava uma saída em grande estílo. Organizei facções e presos influentes numa grande discussão, exatamente no mesmo dia que ia ser libertado. Dei as costas, joguei todos os cigarros fora e apreciei a liberdade. Atrás de mim deixei um presídio em desordem, onde eu era respeitado e amado, e a carnificina naquela noite foi inevitável. Sei que perdi muitos amigos, mas o fiz apenas para deixar marcado que, do lado de fora, realmente a parada é outra.

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