segunda-feira, outubro 18, 2004

Anti-Stephen

Não levava uma vida cheia de emoções. Todo dia depois da aula brincava com os amigos na rua da frente de casa. Aos sábados passava a manhã vendo televisão e a tarde em aventuras imaginárias. Domingo de manhã era reservado para a igreja, que era enorme a seus olhos. Gostava dela, mas às vezes gostaria de ficar em casa dormindo um pouco mais.
Então, quando ficou um pouco mais velho, passou a freqüentar as aulas de catequese. Uma moça bonita, que o fazia lembrar dos anjos que ela mesma descrevia, era muito atenciosa com todos eles. O sermão do padre, que já era idoso, mas com uma voz firme e clara, passou a povoar sua imaginação e a fazer com que seus pensamentos voassem em torno de suas experiências. Quase sempre se arrependia de muitas delas. Ouviu falar do inferno e dos castigos. Assim decidiu que teria uma vida digna aos olhos divinos.
Certo dia censurou o seu amigo que o propunha roubar frutas de um vizinho. Pulariam o muro sem problemas, escalando a árvore logo em seguida para furtar alguns frutos maduros. Deus olharia para eles com raiva e os castigariam, por isso discursou para seu amigo a respeito do fogo do inferno, do castigo eterno e de como deveríamos ser bons. Seu amigo não levou em consideração seu apelo. Pulou o muro ignorando tudo o que foi dito. Antes de seu amigo chegar ao pé da árvore ele já corria com todas as suas forças para casa. Ficou pensativo a tarde toda, e rezou. No outro dia, após a catequese, ele foi de encontro com a moça bonita e boazinha, ela tinha que saber de tudo! Ela saberia o que ele teria que fazer.
Contou para ela toda a história, como tentou fazer salvar seu amigo da tentação e como correu para casa, quase chorando, com medo de que deus o castigasse por participar desse pecado. Ele ainda se sentia responsável, não queria contar para o vizinho que o seu amigo havia entrado no quintal dele e roubado as frutas. Mas também não queria que sua alma fosse torturada eternamente pelo capeta. A moça bonita apenas sorriu para ele e disse que não havia problemas, que todos os garotos fazem isso e ele poderia ficar tranqüilo. Não, não! Estava errada, ele pensava. Ela, a moça bonita, também poderia ter sido dominada pelo impulso do pecado, tão tentador. Sua mãe também disse que naquela idade o pecado é muito mais difícil de controlar, e parecia que agora ele havia entendido o que ela quis dizer naquela mesa de jantar ao lado do seu pai. Não havia outro jeito, teria que falar diretamente com o padre.
Após a missa ele falou para sua mãe que ele queria se confessar. Não, ele ainda não tinha idade. Então, quase chorando, ele disse que precisava falar com o padre, que ele tinha medo. Seu pai permitiu que ele tivesse uma conversa com o padre, e foi pessoalmente acompanhá-lo. Não havia mais ninguém na igreja, e o padre, que de perto parecia muito com seu avô, o fez sentar em um dos bancos da igreja enquanto seus pais o esperavam do lado de fora. O padre se pôs a ouvir. Ele contou tudo, seus temores e suas preces pelo furto de seu amigo, e também contou sobre a moça bonita que não o havia ajudado e pediu ajuda para salvá-lo do pecado e da condenação eterna. O padre, que tinha olhos claros, encarava-o profundamente, e depois de um instante sorriu para ele dizendo que sua alma ainda estava salva, que não havia alma mais pura no mundo. Não havia nenhum problema... Garotos são assim mesmo, disse o padre. Ele saiu da igreja ainda perturbado.
Passou alguns dias pensando e rezando. Não, o padre não poderia se enganar. Estava escrito, ele mesmo dizia que roubar era pecado. Passou a comer menos. Mesmo que tivesse vontade e oportunidade não comia seus doces. Parou de brincar, e qualquer tipo de sorriso já tinha o ar do pecado. O padre havia dito que sua alma estava pura, mas ele não se sentia assim. Deus sabia que ele não era digno, e ninguém mais, a não ser ele, poderia dar um jeito nisso. Rezou, mas a reza não adiantava. O único jeito era assumir o seu pecado abertamente para todos e esperar as pedradas.
Naquela manhã ele se levantou cedo e foi até a casa do seu vizinho. Seu objetivo era enfrentá-lo, e agüentar todas as conseqüências de seus atos imundos de modo que deus o perdoasse por ter sido tolo. Bateu na porta e esperou alguns instantes. Um senhor, já velho conhecido, o recebeu com um sorriso no rosto, perguntando sobre sua família e sua casa e o convidando para entrar em sua residência. Ele não conseguia olhar para esse sorriso, não agüentava essas gentilezas, ele tinha que se livrar desse peso o mais rápido possível! Sentou-se na mesa da cozinha a pedido do seu anfitrião, que não demorou a questionar os motivos que o levaram a realizar tal visita. Ele confessou tudo. Disse, quase chorando, estar arrependido pelo seu amigo, que havia participado de tudo, que estava com medo. Disse que orou muito, mas não adiantava, pois o pecado sempre voltava a sua mente assim que fechava os olhos. O senhor seu vizinho o olhava atentamente. Depois que ele terminou, o senhor seu vizinho soltou uma gostosa gargalhada e disse que ele nem sabia que tinha frutas em seu quintal. Aquele senhor, com um sorriso maior ainda do que o anterior, disse que se sentia muito satisfeito que os garotos pulassem em seu quintal para comer de suas frutas, pelo menos ela não estragariam. Também confessou que quando garoto fazia coisas similares em uma fazenda longínqua, onde havia nascido e crescido. Depois ofereceu alguns doces a ele e rindo bastante o conduziu até a porta, aconselhando ele a ir brincar e a esquecer tudo aquilo.
Correu para casa em lágrimas. Seus pais o questionaram, queriam saber o que havia acontecido. Ele tinha vergonha, nada tinha adiantado e ele se sentia sujo! Contou para seus pais toda a história, e seus pais sorriram dizendo que não tinha problema, se até mesmo o dono das frutas não via problema nesse pequeno roubo, então não tinha motivos para tanto. Estavam errados! Todos estavam errados! Queria e tinha, necessariamente, que limpar sua alma. Deus tinha que perdoá-lo, ele estava arrependido. Não conseguia parar de chorar, e seus pais não sabiam o que fazer. “Isso é normal, roubar frutas, veja só...” todos lhe diziam a mesma coisa. Mas o que eles não sabiam é que deus olhava para ele sempre, e o fazia se arrepender. O problema é que não conseguia esquecer o que aconteceu, e era uma das formas de deus o castigar. Se deus não visse problemas nisso, por que esse fato ainda o perturbava? Ele percebeu que estava sozinho, que estava encurralado. Sentiu raiva e culpou o diabo por estar atentando ele, mas ele estava determinado a limpar sua alma custe o que custar.
O tempo passou e ele se fechava cada vez mais em seu quarto. As novidades não o atraiam, nada de televisão e nem de brincadeiras. Gostava de passar o tempo lendo a bíblia, e depois rezando ajoelhado em seu quarto. Seus pais contrataram médicos, algumas mulheres que lhe oferecia doces, mas sabia que eram enviados pelo demônio. O pecado estava em todo lugar. Até mesmo o padre veio conversar com ele, mas ele o padre era apenas um homem, que também poderia se enganar. Apenas deus, em sua mente e espírito, dizia a verdade.
Nada era suficiente. Ele já havia lido a bíblia três vezes. Seus joelhos já agüentavam bem suas rezas que duravam horas. Repetiu o terço cinqüenta vezes seguidas e não comia nada além de pão e água. Seus pais estavam preocupados. Conseguiu manualmente fazer uma corda, com pedaços de suas roupas, e com moedas presas nas pontas ele se torturava até sangrar. Porém ainda estava lá. Percebeu que não somente o episódio do roubo das frutas, que já fazia muito tempo que tinha acontecido, mas como também tantos outros. Lembrou que olhou para uma menina bonita, e teve que dar mais uma chibatada nele próprio. Lembrou de suas brincadeiras, que sempre tinham violência, portanto merecia mais chibatadas. Também lembrou das coisas que via na televisão, dançarinas e mulheres bonitas. Mais moedas batendo forte contra a pele de suas costas. Seus pais tentaram tirar sua arma purificadora de alma, mas não conseguiam. Ele já era um jovem, magro e tristonho, mas que ninguém conseguia chegar perto.
Só saía de casa para ir a escola e para a igreja. Detestava a escola e adorava a igreja. Quando chegava da escola ele rezava e chorava ainda mais, pois sabia que detestar a escola era um grave pecado. Não tinha como enganar deus, ele via tudo! Não tinha amigos, pois todos eram pecadores. Sentiu falta de conversar e de ouvir, mas depois se acostumou e começou a perder o hábito de se comunicar. Não cuidava da sua aparência, pois a vaidade era também um grave pecado. Deus era o único caminho.
Tornou-se adulto solitário. Saiu da escola e fazia trabalho voluntário na igreja, onde podia ficar mais próximo de deus. Ninguém conversava com ele, e ele só recebia ordens do novo padre que mal o conhecia.
O tempo foi passando, e ele saiu de casa. Morava agora definitivamente na igreja, em algum canto qualquer, pois o conforto também era pecado. Depois de um tempo já não se reconhecia no espelho, e sequer pensava em outras coisas, a não ser em seus trabalhos manuais. Puramente manuais. Apenas comia, trabalha e dormia. Não precisava mais rezar, pois sempre estava orando em sua mente, repetindo sem parar os velhos sermões. Não se vestia adequadamente e parou de ter dúvidas. Não precisava de mais nada, tinha o seu alimento e a sua rotina... Tudo era certo, era tudo o que queria. Não tinha mais medo. Não tinha mais opinião. Não tinha vontade. Tinha, finalmente, encontrado deus.

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