segunda-feira, agosto 23, 2004

Impossibilidade de beleza interior

O assunto por si só é fascinante. Comumente nos deparamos com essa expressão, mas o que seria precisamente essa tal de beleza interior? Que espécie de bicho sinistro, que nos ronda como se fosse rato de esgoto, está sempre presente na nossa inútil busca pela beleza interior? Certamente as questões levantadas são tão estranhas quanto a própria expressão cotidiana, mas o devido olhar especulativo ajuda a elucidar essa questão, inclusive desvendando o mistério: o que é a beleza interior? A resposta para essa questão é nosso principal objetivo.
É necessário abordar devidamente essa expressão naquilo que ela nos mostra sem nenhum obstáculo. Em primeiro lugar podemos abordar a idéia de “beleza”. É inegável que essa expressão é responsável pela deterioração da beleza propriamente dita, dando uma idéia distorcida daquilo que vem a ser belo. Ao nos deparar com qualquer objeto, seja ele uma obra de arte elevada ou apenas obra da natureza, podemos julgá-lo de belo ou não, conforme os gostos de cada um. A origem desse julgamento não nos interessa aqui, mas é fato inegável que todos possuem os seus, ou seja, a beleza está constantemente influenciando nossos julgamentos. Mas mais precisamente como percebemos uma determinada beleza? Como ela nos atinge? Pelo empirismo isso se torna evidente: é necessário que tenhamos uma abordagem do objeto julgado através de nossos sentidos. Somente assim podemos dizer que um determinado quadro ou escultura é bonito. Assim também dizemos que algumas obras literárias são bonitas, pois as mesmas nos fornecem imagens, incentivam a nossa imaginação, e criamos cenas em nossas mentes que parecem bonitas aos nossos olhos, seja pela situação na qual o ator nos coloca ou pelo ambiente que o mesmo descreve.
Posto que o belo tem essa necessidade de tocar nosso sentido, partimos agora para a análise do termo “interior”. Dado que o senso comum nos diz que o interior é uma espécie de “subjetividade do outro”, e esse outro pode ser qualquer pessoa, partimos da ilusão já posta pela ignorância comum que o mundo é divido entre “dentro” e “fora”. Claro que essa visão de mundo é relativista, por representar uma visão subjetiva pura. Não tocaremos na complexidade desse assunto, pois o objetivo aqui é outro. Também não podemos negar que aquilo que comumente conhecemos como “interior” é algo completamente escondido, se revelando de algumas formas abstratas e perdidas durante uma relação qualquer. Conhecemos as máscaras dessa interioridade, ou seja, pequenos sinais que são projetados de “dentro” para “fora”, que são reflexos daquilo que uma determinada pessoa é por essência. De fato, ao nos deparar com esses sinais, sejam qual for, montamos uma determinada idéia a respeito dessa pessoa. Se antes ela nos parecia feia, e nos desagradava olhar para ela, agora já é possível olhar sem notar essa feiúra, pois os “sinais internos” são visivelmente atraentes, e são eles que nos fazem sentir bem. Doce ilusão acreditar que a conseqüência de um fato aparente são características verdadeiras, já impostas por um senso comum caótico, baseado em morais questionáveis e hipócritas.
Levo em consideração o seguinte ponto: de fato podemos nos acostumar com uma pessoa, mesmo ela sendo feia, desde que possua as características “internas” que nos agrade. O contrário também parece verdadeiro, quando nos deparamos com uma pessoa bonita, mas que não nos agrade intelectualmente ou moralmente, então passamos a achá-la feia. Isso é uma ilusão criada pela mistura irracional de nossas percepções. A interioridade aqui descrita, que é a do senso comum, é essa essência que só conhecemos por mediações. Ela mesma, a dita essência, a interioridade, ou qualquer que seja o seu nome dado pela mediocridade intelectual, nunca será tocada pelos nossos sentidos. Em outras palavras, não podemos nunca olhar para a essência de uma pessoa, não podemos tocar, cheirar ou analisar sua forma, se é grande, pequena, etc. Ora, dado que a beleza possui a característica de representação harmônica das percepções (forma, cor, volume, cheiro, som, etc) e dado também que é impossível que a interioridade chegue a essas percepções (ou vice-versa), a própria afirmação de que existe uma beleza interior já é por si só contraditória. Em outras palavras, a resposta para nossa questão já chega na simples análise das palavras que compõem a própria expressão analisada: contradição.
Mas como explicar então que uma pessoa feia pode se tornar bonita, enquanto que uma bonita pode se tornar feia, dependendo do grau de compatibilidade entre nossas condutas (sociais, morais, intelectuais, etc)? Essa é apenas uma ilusão criada pela nossa dificuldade de compreender que nos relacionamentos humanos, apesar de estarem em jogo várias características, sempre tendemos a polarizar aquilo que é uma coisa só, e a dividir (em “externo” e “interno”) essa mesma coisa que é única. Uma pessoa feia é feia, e ela não fica bonita somente por que nos agrada. Sim, ela nos agrada, e não sentimos mais repulsa ao olhar para sua cara ou rosto sem harmonia, sem beleza, pois o que determina se uma relação vale ou não a pena não é o “interior” isolado, da mesma forma que não é a “beleza” isolada que sustenta uma determinada relação. Atribuir a uma relação somente a “interioridade” ou somente a “beleza”, nos dois casos, é um erro comum, porém grave, que nos leva a cair sempre nas mesmas expectativas frustradas. O conjunto do todo, o ser único, feio e agradável, feio e desagradável, belo e agradável ou belo e desagradável, é o que faz de nosso julgamento sobre ele o mais próximo da verdade, sem dividi-lo em análises ambíguas a respeito de sua essência ou se sua aparência, pois as duas são a mesma coisa. Enfim, a expressão beleza interna é uma contradição criada pela necessidade do senso comum de definir aquilo que idealmente deveria ser em detrimento daquilo que realmente é, e por isso essa expressão não passa de uma definição para algo que não existe, e por isso vazio.

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